Justiça do Acre desenvolve projeto Depoimento Sem Dano

Crianças e adolescentes são ouvidos de modo diferenciado para reduzir os efeitos negativos do depoimento judicial

O Fórum Criminal da Comarca de Rio Branco, instalado em abril de 2007, já possui uma estrutura diferenciada para o atendimento de crianças e adolescentes que precisam ser inquiridos nos processos judiciais, especialmente nos relacionados a abuso sexual.

Trata-se do projeto Depoimento Sem Dano, método através do qual a vítima conversa com uma psicóloga ou assistente social numa sala especial, com decoração diferenciada e brinquedos, ao passo que, na sala de audiência, utilizando equipamentos audiovisuais, juiz, promotor e advogados assistem à entrevista judicial pela televisão. As perguntas podem ser feitas por intermédio da profissional da equipe psicossocial, seguindo uma técnica especialmente elaborada para esse tipo de depoimento.

 

O projeto é uma iniciativa pioneira da 2ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre, iniciado em 2003, e hoje difundido em vários Tribunais de Justiça, como São Paulo, Rio de Janeiro, Goiânia, Rondônia e Acre. Países como França, Espanha e Argentina também têm práticas semelhantes nessa área, que já foram inclusive incorporadas à legislação.

No ano de 2006, durante a gestão do Desembargador Samoel Evangelista na Presidência do Tribunal de Justiça do Acre (2005-2007), foi formalizada uma parceria do TJAC com a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH), para dar início ao projeto no Estado. Isso ocorreu a partir das sugestões da Juíza Maria Tapajós, à época titular da Vara da Infância e da Juventude de Rio Branco, e do Promotor Francisco Maia, que atua na unidade.

Posteriormente, o projeto seguiu na gestão da Desembargadora Izaura Maia (2007-2009), que acompanhou a montagem da estrutura física e dos equipamentos necessários ao seu desenvolvimento. Atualmente, na gestão do Desembargador Pedro Ranzi (2009-2011), o projeto encontra-se em sua última fase de execução, quando acontecerá a capacitação da equipe multiprofissional, juízes, promotores, advogados e funcionários para utilização dos recursos e funcionamento da unidade.

Para acompanhar a execução do projeto, na última sexta-feira, 27, o atual Corregedor Geral da Justiça do Acre, Desembargador Samoel Evangelista, realizou visita ao Fórum Criminal da Capital. Acompanhado do diretor de planejamento, João Thaumaturgo Neto, e de técnicos da área de planejamento e informática do TJAC, Márcio Silveira e Alessandro Rocha, o Corregedor confirmou as boas instalações da unidade e o teste dos equipamentos a serem utilizados para depoimento de crianças e adolescentes.

No Brasil, a experiência gaúcha revela que o método do Depoimento Sem Dano favorece a responsabilização dos agressores, já que a qualidade das inquirições aumenta, contribuindo no combate à impunidade nos crimes de abuso sexual. Pelos bons resultados apresentados, o modelo do Depoimento Sem Dano poderá ser recomendado por lei nacional. Esse é o objetivo do projeto de lei 7.524/2006, de iniciativa da deputada Maria do Rosário (PT/RS), que visa a generalização do procedimento em todo o país.

As vantagens do novo procedimento

Nas inquirições tradicionais, muitas vezes o juiz começa a audiência perguntando diretamente a respeito do abuso sexual, sem conversar antes sobre outros assuntos. Ou seja, ele não estabelece um vínculo de confiança com a criança, não se mostra interessado nela, nem deixa claro que a responsabilidade pelo que aconteceu não é dela, o que contribuiria para um bom depoimento e para não causar danos secundários.

Por outro lado, especialistas no assunto indicam que no Depoimento Sem Dano, por não estar dentro da sala de audiência, a criança é poupada das questões impertinentes que costumam ser feitas, já que é possível filtrar as perguntas direcionadas a ela.

A vítima também fica afastada do embate jurídico entre juiz, promotor e advogados, que é bastante freqüente em uma audiência e costuma ser tenso. Se a criança presencia esses conflitos, que fazem parte do processo, isso pode prejudicar a continuidade do depoimento e aumentar os danos para ela.

Outra vantagem que costuma ser indicada é que, diferentemente do laudo psicológico, o depoimento dessa forma garante princípios constitucionais, como o direito ao contraditório e à ampla defesa. Além disso, a audiência fica registrada para ser revista quantas vezes for necessário, inclusive quando o caso estiver em segunda instância, no Tribunal de Justiça.

“A capacitação técnico-jurídica dos operadores de direito não é suficiente para lidar bem com esse gênero de depoimento, por isso é necessária uma estrutura diferenciada como esta, que permita um trabalho mais qualificado e preciso, e não provoque transtornos às crianças e adolescentes envolvidos”, explicou o Desembargador Samoel Evangelista sobre a importância do projeto, durante a visita ao Fórum Criminal de Rio Branco.

Como funciona o Depoimento Sem Dano

Nesse modelo, a inquirição é feita em três etapas. Na primeira delas, chamada de “acolhimento inicial”, a criança e o responsável chegam meia hora antes da audiência e são recebidos pela psicóloga ou assistente social, para evitar um encontro indesejado com o réu, o que poderia prejudicar o depoimento e traumatizar a vítima.

A técnica inicia um processo de aproximação, abordando assuntos diversos da vida dela, para deixá-la à vontade. Conversa também com o acompanhante, nomeado de “pessoa de confiança”, que normalmente é a mãe, para saber sobre a situação social e psicológica da criança. Tudo isso dentro de uma sala que se diferencia do ambiente do fórum, por ter decoração especial e lúdica, monitorada por equipamentos de som e imagem.

A profissional passa então a explicar ao depoente, sempre numa linguagem acessível ao estágio de desenvolvimento em que ele se encontra, o que está fazendo ali e como vai ser a audiência. Por fim, procura saber quais as palavras utilizadas pela própria criança para se referir aos genitais feminino e masculino para, no momento da inquirição, ter certeza de que está sendo clara, compartilhando do vocabulário infantil específico.

Na segunda etapa, a do depoimento em si, são abordados os fatos contidos no processo. Nesse momento o profissional da equipe psicossocial procura ajudar a criança a relatar o ocorrido, utilizando diferentes tipos de pergunta, com preferência às questões abertas, para que ela fale mais espontaneamente sobre o assunto, sem induzi-la a nada. O juiz passa a fazer perguntas, seguido do promotor e do advogado de defesa, todas intermediadas pelo técnico, que vai adequando-as ao universo infanto-juvenil. Depois de transcrito, o depoimento é juntado aos autos do processo.

Se a criança não consegue contar o que aconteceu, podem ser utilizados alguns instrumentos auxiliares, como fantoches e outros bonecos. Nesse caso, a criança assume um personagem para ficar mais fácil para ela falar como se fosse outro. Se a criança está com muita dificuldade de verbalizar, com a utilização dos bonecos e por meio de gestos, ela demonstra as situações e a câmera consegue acompanhar os seus movimentos.

Num terceiro momento, finalizada a inquirição, já com aparelhos de som e vídeo desligados, a pessoa de confiança é chamada para uma nova conversa, em que, junto com a vítima, é feita uma avaliação do depoimento. Ao invés de a vítima ser dispensada depois da audiência, sem qualquer outro contato com o sistema de Justiça, como ocorre no modelo usual, o Depoimento Sem Dano vai além. Se a técnica percebe que a criança está apresentando visíveis dificuldades, encaminha para atendimento especializado gratuito, junto à rede de proteção, pois a metodologia do Depoimento Sem Dano busca não apenas a prova, mas também a proteção da criança.

Nesse processo, o papel da assistente social ou psicóloga durante a audiência é de facilitar o depoimento da criança, de ajudá-la a ficar mais à vontade para falar sobre assuntos constrangedores para ela, numa postura de cuidado e acolhimento. A forma diferenciada para coleta do depoimento de crianças e adolescentes reduz os danos causados a eles, assim como faz valer a garantia dos direitos desses atores no Estatuto da Criança e do Adolescente.

A capacitação de todos os envolvidos – juízes, promotores, advogados, assistentes sociais, psicólogos e servidores da Justiça – é considerada fundamental, pois conhecer a dinâmica do abuso sexual e suas características particulares, não só melhora a qualidade da prova como também ajuda a proteger a vítima e restaurar a sua dignidade.

Com base nessa perspectiva, o Tribunal de Justiça do Acre realizará a capacitação das suas equipes no próximo mês de maio, trabalho que será coordenado pelo idealizador do projeto de Depoimento Sem Dano, Juiz José Antonio Daltoé Cezar, titular da 2ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre.

(Com informações auxiliares do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul).

    

Assessoria | Comunicação TJAC

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