Por Hugo Barbosa Torquato Ferreira*
A terceira turma do Superior Tribunal de Justiça, em apertado julgamento concluído no dia 28 de março de 2012, decidiu que a apenas o teste do bafômetro ou o exame de sangue podem ser aceitos como prova de embriaguez (REsp 1111566).
O resultado repercutiu em todo o país, estimulando novos debates acerca da possibilidade de recusa do motorista à realização de exames para aferição de dosagem alcoólica.
Mas é realmente verdade que, mesmo diante da suspeita de embriaguez, o agente policial estará refém da vontade do motorista em colaborar com a fiscalização?
Entendo que não.
O art. 5°, LXIII, da Constituição da República determina que se informe ao preso sobre o seu direito de permanecer calado. Do mesmo modo, o Pacto de San José da Costa Rica prevê o direito de uma pessoa a não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.
Trata-se de direito fundamental de magnitude inquestionável, que protege o individuo de um previsível abuso do Estado, desestimulando, ainda, a perniciosa busca da confissão como estratégia investigativa principal.
Da mencionada norma (e, subsidiariamente, dos princípios da ampla defesa e da presunção de inocência) é extraído o princípio segundo o qual ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere).
Via de regra, a análise do direito de não produzir provas contra si mesmo é feita a partir da identificação da existência de um agir positivo, um facere. A prova é considerada ilícita quando o investigado for compelido a colaborar, contra a sua vontade e de modo ativo, com a produção de elementos probatórios contra a sua pessoa ou quando a própria recusa for tida como prova.
No caso específico do crime de embriaguez ao volante, a presença de álcool no sangue é um vestígio da infração, razão pela qual, por inteligência do art. 158 do Código de Processo Penal, é forte o entendimento de que o exame de corpo de delito é indispensável, não podendo ser suprido pela confissão.
Outrossim, tendo o legislador adotado a opção de fixar uma dosagem mínima de álcool no sangue para tipificação do delito, o STJ entendeu que só podem ser admitidos como prova os exames capazes de aferir, com exatidão, a quantidade de álcool presente na corrente sanguínea.
É certo, por outro lado, que, dentre os meios existentes para que o Estado colha elementos de convicção (art. 240, § 1º, “h” do CPP), identifique objetos que constituam corpo de delito (art. 244 do CPP) ou descubra objetos necessários à prova da infração ou à defesa do réu (art. 240, § 1º, “e” do CPP) está a busca pessoal.
A revista pessoal está prevista no art. 244 do Código de Processo Penal, tratando-se de um recurso estatal para busca da materialidade delitiva.
Doutrinariamente, pode ser conceituada como “o movimento desencadeado pelos agentes do Estado para a investigação, descoberta e pesquisa de algo interessante para o processo penal, realizando-se em pessoas ou lugares.” (NUCCI, 2008, p. 51).
Mesmo sob a ótica excessivamente garantista conferida ao nemo tenetur pela doutrina brasileira, pacificamente se admite a revista pessoal, uma vez atendidos os requisitos legais. Sobre a legalidade da busca pessoal, desde que haja fundada suspeita, elucidativo o HC 81.305-GO, Supremo Tribunal Federal.
Nesta esteira, não se exigindo a colaboração ativa do investigado, a diligência não colidiria com a garantia de não se autoincriminar.
No caso de fundada suspeita de que uma pessoa esteja transportando entorpecentes em seu estômago, por exemplo, o Estado teria a prerrogativa de aprofundar a busca pessoal, submetendo o investigado à realização de exames para detectar eventual prova da infração. Sobre a legalidade de realização de exame radiográfico, como extensão da busca pessoal, o HC 149146, Superior Tribunal de Justiça.
Nestas hipóteses, a produção da prova é integralmente feita pelo Estado, sem que se exija colaboração ativa do suspeito.
Diferente situação ocorre, por exemplo, na exigência de fornecimento de material gráfico para exame grafotécnico ou no fornecimento compulsório de padrões vocais para perícia fonética. Nestas situações, o STF já decidiu ser facultativa a colaboração da pessoa investigada (HC 77.135 e HC 83.096).
Enfatizo aqui a diferença entre fazer (escrever, falar, soprar) e permitir que outro faça (submeter-se a revista, submeter-se a exame). A meu sentir, não há conflito entre esta última hipótese e o nemo tenetur.
Sobre esta diferenciação, ilustrativa a lição de Adrian Keane, na obra “The modern law of evidence”:
“Uma importante distinção deve ser traçada entre as declarações feitas pelo acusado de modo coercitivo, que, dependendo das circunstâncias, pode envolver violação do direito ao silêncio ou do direito de não incriminar a si próprio e a coleta compulsória de materiais e documentos pré-existentes, o que não envolve violação desses direitos”. (tradução livre – obra sem edição em Português).
No mesmo sentido, importante precedente da Corte Européia de Direitos Humanos, no caso Sounders v. Reino Unido:
“O direito de não se incriminar envolve, no entanto, o respeito da vontade de uma pessoa acusada de permanecer em silêncio. Tal como comumente entendido nos sistemas jurídicos das Partes Contratantes da Convenção e em outros lugares, não se estende para a utilização em processos criminais de material que pode ser obtido a partir do acusado através do uso de meios coercivos, mas que tem uma existência independente da vontade do suspeito, tais como documentos adquiridos ao abrigo de um mandado judicial, sangue, respiração, amostras de urina e de tecidos corporais para fins de testes de DNA.” (tradução livre).
Feitas estas ponderações, ainda que consideremos que a imprescindibilidade de uma conduta ativa (soprar) torna inexigível do suspeito de dirigir embriagado a realização de exame bafométrico, não vislumbro a mesma limitação em se tratando de exame de sangue.
Neste caso, não se exigirá um facere por parte do motorista, mas um comportamento absolutamente passivo frente à busca da materialidade delitiva pelo agente estatal.
Sob este prisma, não há diferença entre constranger uma pessoa suspeita de se encontrar em flagrante delito a se postar de modo a permitir a realização segura de revista pessoal, a se submeter a pequenas quantidades de radiação, a sofrer uma picada de agulha para retirada de sangue, a permitir-se fotografar ou a permitir sua identificação papiloscópica. Em todos esses casos, o que se exige é a colaboração passiva do investigado, sem a prática de atos especificamente direcionados à produção da prova. Frize-se que as duas últimas hipóteses encontram, ainda que a contrario sensu, previsão constitucional (art. 5o, LVIII da Constituição da República).
Concluindo a reflexão, parece-me razoável que, diante de fundada suspeita de embriaguez, não querendo o motorista realizar o teste bafométrico, seja feita a coleta compulsória de amostra sanguínea para exame pericial.
Referências
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
KEANE, Adrian. The modern law of evidence. England: Oxford University Press, 2008.
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*Hugo Barbosa Torquato Ferreira é juiz de Direito no Estado do Acre. Atualmente é titular da Comarca de Assis Brasil e responde, concomitantemente, pela Vara Criminal da Comarca de Brasiléia. Foi advogado e agente da Polícia Federal. Autor dos livros “Questões cíveis enfrentadas pelo STF e pelo STJ em 2007” (ISBN: 978-85-7716-414-1) e “Questões Criminais enfrentadas pelo STF e pelo STJ em 2007” (ISBN: 978-85-7716-415-8). E-mail para contato: hugotorquato@hotmail.com.