Desde que a Comissão de Juristas entregou ao Senado da República, em fins de junho, o anteprojeto de Código Penal, ele tem sido objeto de muitas críticas. Elas são bem-vindas, necessárias até. Além de representarem o exercício do direito fundamental de opinião, contribuem para legitimar o procedimento de reforma legislativa. Ninguém razoavelmente informado poderá dizer que não o conhece ou que não ouviu falar dele.
Algumas destas críticas foram realizadas com linguagem deselegante e emocional, pouco apropriada a um debate civilizado. Entretanto, ainda assim são bem-vindas e só deporão contra quem as fez.
Claro que mesmo em assuntos tão candentes, um pouco de humildade e respeito aos outros continua recomendável.
Erros foram apontados no anteprojeto. Eles existem. A Comissão de Juristas jamais se imaginou infalível, tanto mais diante do tamanho da missão que recebeu: atualizar e unificar toda a legislação penal brasileira. São erros como a pena do crime de racismo, que não constou do texto enviado ao Senado (prisão de um a cinco anos), a duplicidade dos artigos 440 e 441 (registrar loteamento não autorizado) ou o molestamento sexual de vulnerável, que só faz sentido se a idade da vítima for menor do que 18 anos, e não 12, como consta do artigo 188. É o caso da desproporção entre alguns crimes de periclitação da vida e da saúde e crimes ambientais. São erros facilmente corrigíveis pela Comissão de Senadores encarregada de examiná-lo.
Há, porém, indicações de erros que não são, na verdade, erros, mas opções político-criminais firmadas pela Comissão de Juristas, ainda que por maioria de votos. Quando ela propõe descriminalizar o porte de drogas para consumo pessoal, amplia as hipóteses de aborto legal ou reduz a sanção de alguns crimes contra o patrimônio, não o faz por vício de redação, mas por escolha. Quando optou por tornar mais severas as condições para a progressão de regime de cumprimento de pena, para condenados por crimes violentos, ou ampliou para 40 anos o tempo máximo do cumprimento de pena unificada (se o novo crime for praticado após o início dos trinta anos da unificação anterior) ou previu a responsabilidade penal da pessoa jurídica pelo crime de corrupção, não o fez por erro, pressa ou açodamento, mas porque concluiu que estas eram medidas necessárias para a defesa da sociedade.
Causam espécie pronunciamentos que procuram passar a ideia — sem a menor credibilidade científica — de que o Direito Penal é uma ciência exata, uma matemática na qual apenas uma das respostas ou soluções é correta. E, coincidentemente, a única e exclusiva resposta certa é exatamente aquela da preferência do autor da crítica…
Não é bem essa a história da dogmática penal.
Bem ao contrário, em poucas outras áreas do conhecimento humano há tanta polêmica e diversidade. São correntes de pensamento, grupos de opinião, escolas, mundividências e pontos de vista os mais diversos, como é próprio a um ramo do Direito que lida com a liberdade, o patrimônio e a dignidade das pessoas. Há um autoritarismo inerente a esta postura de “só a minha doutrina é boa”. Disfarçá-lo, pretendendo dar ares de unanimidade àqueles mesmos pontos de vista personalistas, ou valendo-se de adjetivações incontidas, pouco contribui para o debate, por mais eminente que seja o doutrinador.
A Comissão de Juristas se orgulha da pluralidade de sua constituição, com membros vindos dos mais diversos estados da Federação, das mais diversas áreas de atuação profissional. Ou será que bons juristas só existem em estados determinados? Pretender desqualificar a Comissão como sendo um “grupo de amigos” é ignorar como se deu a tramitação do Requerimento formulado pelo senador Pedro Taques.
Se a Comissão de Juristas fosse um grupo homogêneo, certamente não viriam críticas do setor de pensamento que ele representaria. Em contrapartida, o resultado seria um projeto unilateral, com pouca chance de trânsito numa sociedade aberta e pluralista como a brasileira. Foi uma Comissão que não teve temor de se expor à luz do sol, de debater fortemente em sessões transmitidas pelo TV Senado e, depois, de prestar contas à sociedade, por meio da imprensa, de suas conclusões. A transparência é um claro vetor constitucional, uma profissão de fé na democracia. Nem todos a fazem. Nós a fizemos.
Um anteprojeto de Código Penal não é um Código Penal. Falta-lhe o imprescindível requisito da prévia discussão e deliberação dos representantes eleitos do povo, os deputados e senadores e, à sua vez, do presidente da República. Convertido em projeto, o Senado saberá discuti-lo coma sociedade, corrigi-lo e aprimorá-lo, preservando, oxalá, muitas das soluções corajosas e inovadoras que ele apresenta.
Se apressaram em rotular o projeto, praticando um “etiquetamento” que se imaginava reprovável, ignorando regras básicas sobre comissões parlamentares e o processo legislativo.
É, insista-se, um projeto moderno, descriminalizador e descarceirizador. Sua leitura, sem opiniões pré-estabelecidas, o demonstrará.
A iniciativa do Senado Federal de recuperar o protagonismo próprio de uma casa legislativa e votar uma Comissão de Juristas para propor um anteprojeto de Código, gerou inconformismos. Era o Executivo que costumava nomear comissões… Por que mudar? Não foram chamadas as mesmas pessoas de sempre… Inaceitável! Falar com jornalistas, depois das deliberações? Que absurdo! Transmitir as reuniões e debates pela televisão? Não, de jeito nenhum! Devolvam-nos, com urgência, nossas salas fechadas!
São setores que dizem querer, mas não querem mudança nenhuma: mudanças são incompatíveis com velhas ideias.
Enquanto isso, nosso país se recobre da vergonha de aceitar tanta violência e desumanidade, seja na desproteção das vítimas e da própria sociedade, seja no tratamento que oferece aos seus presos. Esta é a verdadeira vergonha.
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*Luiz Carlos dos Santos Gonçalves é procurador regional da República, relator geral da Comissão de Juristas para a Reforma Penal, mestre e doutor em Direito do Estado.
Artigo publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico, edição de 3 de setembro de 2012.