Por Luiz Flávio Gomes*
Em 2010, ano da consolidação mais recente das estatísticas sobre acidentes de trânsito no Brasil, morreram 40.601 pessoas. Segundo a projeção para 2012, feita pelo instituto Avante Brasil, serão 46 mil os óbitos. Não há dúvida que temos que reagir contra essa tragédia nacional. Mas não podemos esquecer que o Brasil encontra-se regido constitucionalmente por um Estado Democrático de Direito, que possui regras limitadoras do tendencialmente autoritário poder punitivo estatal, que também pode ser criminoso (Zaffaroni, 2012a, p. 38), tal como foi o direito penal nazista de 1933-1945.
Por meio da Resolução 432/13, o Conselho Nacional de Trânsito (Contran) regulamentou, em 29/01/13, a Lei 12.760/12, de 21.12.12, conhecida como nova lei seca. Com a adoção (não absoluta) da “tolerância zero” de álcool no sangue, estamos diante de uma das legislações mais duras do planeta, seja na parte administrativa, seja na parte criminal, que prevê prisão de 6 meses a 3 anos.
Para o efeito de se distinguir o que é infração administrativa (artigo 165) e o que é crime (artigo 306), temos que começar examinando duas situações bem diferentes: (a) o motorista que se submeteu a algum exame pericial (exame de sangue ou teste de etilômetro) e; (b) o motorista que se submeteu a exames laboratoriais (caso das drogas) ou que se recusou a fazer qualquer tipo de exame – diga-se de passagem, é direito constitucional não se submeter a nenhum exame corporal que demande uma atividade positiva do condutor: ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo – nemo tenetur se detegere.
Desde logo, considerando a forma equivocada, autoritária, automática e midiática com que estão interpretando a nova lei seca, não há nenhuma dúvida de que os motoristas tenderão a não fazer qualquer tipo de exame pericial, porque, com isso, mesmo nas situações em que está praticando uma mera infração administrativa, vai correr altíssimo risco de ser enquadrado, aberrantemente, como criminoso. Vamos ao exame:
Motorista periciado (exame de sangue ou etilômetro)
Quando o motorista se submete ao exame de sangue ou ao teste do etilômetro, o poder punitivo estatal, aliado à acrítica propaganda midiática, afirma equivocadamente que continua em vigor o perigo abstrato presumido (ou puro) fundado no critério meramente quantitativo que, na nossa opinião, perdeu a relevância que tinha antes da lei de 2012. Vejamos o que diz a Res. 432/23:
DA INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA
Artigo 6º
A infração prevista no artigo 165 do CTB será caracterizada por:
I – exame de sangue que apresente qualquer concentração de álcool por litro de sangue;
II – teste de etilômetro com medição realizada igual ou superior a 0,05 miligrama de álcool por litro de ar alveolar expirado (0,05 mg/L), descontado o erro máximo admissível nos termos da “Tabela de Valores Referenciais para Etilômetro” constante no Anexo I;
III – sinais de alteração da capacidade psicomotora obtidos na forma do artigo 5º. Parágrafo único. Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas previstas no artigo 165 do CTB ao condutor que recusar a se submeter a qualquer um dos procedimentos previstos no artigo 3º, sem prejuízo da incidência do crime previsto no art. 306 do CTB caso o condutor apresente os sinais de alteração da capacidade psicomotora.
DO CRIME
Artigo 7º
O crime previsto no artigo 306 do CTB será caracterizado por qualquer um dos procedimentos abaixo:
I – exame de sangue que apresente resultado igual ou superiora 6 (seis) decigramas de álcool por litro de sangue (6 dg/L);
II – teste de etilômetro com medição realizada igual ou superior a 0,34 miligrama de álcool por litro de ar alveolar expirado (0,34 mg/L), descontado o erro máximo admissível nos termos da “Tabela de Valores Referenciais para Etilômetro” constante no Anexo I;
III – exames realizados por laboratórios especializados, indicados pelo órgão ou entidade de trânsito competente ou pela Polícia Judiciária, em caso de consumo de outras substâncias psicoativas que determinem dependência;
IV – sinais de alteração da capacidade psicomotora obtido na forma do artigo 5º.
§ 1º A ocorrência do crime de que trata o caput não elide a aplicação do disposto no artigo 165 do CTB.
§ 2º Configurado o crime de que trata este artigo, o condutor e testemunhas, se houver, serão encaminhados à Polícia Judiciária, devendo ser acompanhados dos elementos probatórios.
O crime se configuraria, sempre, conforme a Reselução 432/13, com 6 decigramas ou mais de álcool por litro de sangue ( 6 dg/L) ou com 0,34 miligramas ou mais de álcool por litro de ar alveolar expelido (0,34 mg/L).
Trata-se de uma interpretação numérica ou automática da lei penal, que é cientificamente aberrante e antropologicamente escatológica: porque fundada em critérios estatísticos quantitativos, configuradores de verdadeiros leitos de Procusto, derivados de presunções genéricas que desconsideram a individualidade das pessoas.
Cuida-se, ademais, de interpretação nitidamente inconstitucional, porque fundada em presunção fática contra o réu (presunção automática da alteração da capacidade psicomotora), que viola flagrantemente o princípio constitucional e internacional da presunção de inocência.
É, por outro lado, penalmente autoritária, porque, com a citada quantidade de álcool no sangue, já se presume a alteração na capacidade psicomotora do agente assim como a condução sob a influência do álcool (que são requisitos típicos que não podem ser presumidos). Tudo que está contemplado objetivamente no texto legal deve ser provado (não presumido).
É, ainda, dogmaticamente tirânica, porque ignora a dimensão material da tipicidade, defendida pela concepção constitucional do delito (veja L.F. Gomes, Fundamentos e limites do direito penal) a partir da teoria da imputação objetiva de Roxin e da teoria contencionista de Zaffaroni.
Por último, é epistemologicamente incorreta, na medida em que o perigo abstrato se contenta com o mero desvalor da conduta presumidamente ofensiva. Tal como foi desenhado no direito penal nazista da Escola de Kiel, sobretudo por Dahm e Schaffestein, prescindindo-se tanto da comprovação da perigosidade real da conduta como do desvalor do resultado.
Em nossa opinião, a interpretação fundada em automatismos generalistas é inadequada e absurda, porque o legislador de 2012 abandonou a técnica do perigo abstrato puro ou presumido, que tinha sido adotada na redação do artigo 306 em 2008 – dirigir com 6 decigramas ou mais. Importa, agora, analisar no delito de embriaguez ao volante em cada caso concreto, cada pessoa singular, seu sexo, altura, habitualidade da alcoolemia etc.
Cientificamente se sabe que o álcool afeta as pessoas de maneira distinta. Cada uma tem sua singularidade e reage de forma diferente frente ao álcool. É por isso que as generalizações nessa área se apresentam “procustamente” aberrantes. Por exemplo: “A bebida afeta o sexo feminino mais rapidamente do que o masculino. O consumo de uma dose por um homem de 70kg produz uma concentração de 0,2 gramas de álcool por litro de sangue (g/l), em média. Numa mulher de 60kg, a mesma dose resulta em 0,3 g/l. Não que todas sejam fracas para beber. É que, normalmente, a mulher tem menos água no corpo (o etanol se dilui em água) e o fígado feminino demora mais para metabolizar o álcool. Elas, ademais, [com o mesmo peso] têm percentual de gordura maior que os homens” (O Globo de 14/8/11, página 40).
Motoristas que não fizeram exame de sangue ou etilômetro
Considerando-se que ninguém é obrigado a fazer o exame de sangue ou mesmo o teste do etilômetro (por força do princípio nemo tenetur se detegere), a lei nova possibilitou provar a embriaguez por sinais indicativos de alteração da capacidade psicomotora. Diz a Res. 432/13:
DOS SINAIS DE ALTERAÇÃO DA CAPACIDADE PSICOMOTORA
Artigo 5º
Os sinais de alteração da capacidade psicomotora poderão ser verificados por:
I – exame clínico com laudo conclusivo e firmado por médico perito; ou
II – constatação, pelo agente da Autoridade de Trânsito, dos sinais de alteração da capacidade psicomotora nos termos do Anexo II.
§ 1º Para confirmação da alteração da capacidade psicomotora pelo agente da Autoridade de Trânsito, deverá ser considerado não somente um sinal, mas um conjunto de sinais que comprovem a situação do condutor.
§ 2º Os sinais de alteração da capacidade psicomotora de que trata o inciso II deverão ser descritos no auto de infração ou em termo específico que contenha as informações mínimas indicadas no Anexo II, o qual deverá acompanhar o auto de infração.
Quando ingressamos nesse terreno dos “sinais indicadores da alteração psicomotora” o subjetivismo é quase que absoluto, cabendo considerar cada pessoa, cada caso. Aquele automatismo que se pretende contra o motorista que fez exame de sangue (ou etilômetro) desaparece. Sai a matemática e entra o singularismo de cada caso.
O tratamento jurídico de um e outro motorista é totalmente distinto, desigual. Trata-se do mesmo motorista e da mesma causa: a embriaguez. Num dia o motorista aceita fazer o exame e é flagrado com 0,34 dg/L: é automaticamente, presumidamente, criminoso. Noutro dia ele recusa o exame e vai ser julgado pelos sinais. Aqui o subjetivismo prepondera. Pode até estar com 0,40 ou 0,50 ou mais de álcool no sangue e ser tido como infrator administrativo.
A violação ao princípio da igualdade (isonomia) está mais do que evidenciada. Motorista periciado: automatismos, presunções, regras quantitativas abstratas, generalizações, estatísticas etc. Motorista não periciado: cada caso é um caso, tudo depende dos sinais indicativos de cada pessoa, o que significa uma pluralidade de valorações nebulosas, subjetivas e, muitas vezes, até mesmo disparatadas.
Para que não ocorra esse flagrante tratamento diferenciado, inseguro, incongruente e nebuloso, só resta um caminho: respeitar a lei nova em sua literalidade (artigo 306). Cumpra-se o que está na nova lei. Vamos respeitar a legalidade. No artigo 306, caput, não existe nenhuma referência quantitativa. Logo, para efeitos penais, todos os motoristas devem ser tratados igualmente (com o mesmo critério). Não pode haver variação de critério: para alguns motoristas, critério quantitativo; para outros, critério subjetivo, valorativo.
A quantificação de álcool no sangue (em relação aos motoristas que fizeram o exame ou o teste) é apenas um dos sinais indicativos da embriaguez. Mas uma coisa é provar a embriaguez e outra distinta é o grau de alteração da capacidade psicomotora do agente assim como a forma como ele conduzia o veículo, sob a influência do álcool (ou outra substância psicoativa). O legislador de 2012 abandonou o critério do perigo abstrato puro (ou presumido), na medida em que o caput do artigo 306 não apresenta nenhum dado numérico. Rompeu-se com o automatismo.
O que está previsto no novo artigo 306 é o perigo abstrato de perigosidade real, que exige a comprovação efetiva da alteração da capacidade psicomotora do agente assim como uma condução anormal (por exemplo, um zigue-zague, uma batida em outro veículo etc.), que é da essência do crime de dirigir sob a influência de substância psicoativa.
Fora disso, estamos diante de uma infração administrativa. O motorista não escapa, de forma alguma, pois vai responder por algo. Mas esse critério é muito mais justo, porque trata todos os motoristas igualmente. É o critério do caso concreto, competindo ao juiz a palavra final sobre o enquadramento do fato como infração administrativa ou como infração penal.
Os operadores jurídicos, destacando-se os advogados, não podem se conformar com a interpretação automática e midiática do novo artigo 306. Se o legislador mudou de critério, modificando a redação da lei, não se pode interpretar o novo com os mesmos critérios procustianos da lei antiga. O poder punitivo estatal, aliado à propaganda midiática, está ignorando a nova redação da lei. Para ele, mudou-se a lei para ficar tudo como era antes dela, para que ela fique como era. Trata-se de uma postura malandra do poder punitivo estatal e da criminologia midiática (Zaffaroni: 2012a, p. 10 e ss.), que os intérpretes e operadores jurídicos não podem aceitar.
__________
*Luiz Flávio Gomes é jurista e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil.
Artigo publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico, edição de 1º de fevereiro de 2013.