Por Antonio Galvão*
Tema corriqueiro que vem à tona por ocasião de julgamentos polêmicos e de grande repercussão, a relação entre clamor popular e Justiça Penal foi objeto de acalorados posicionamentos ao longo do julgamento do mensalão (designação que uso sem qualquer intuito valorativo, mas apenas por reputar pouco acessível e demasiadamente pasteurizado o nome Ação Penal 470). De um lado, havia aqueles que categoricamente afirmavam que a “Justiça” (no caso o Supremo Tribunal Federal) não poderia se curvar ao “Clamor Popular”, mas sim julgar conforme a Lei. Em sentido contrário, outros diziam que os julgadores, por serem fruto da sociedade, não poderiam permanecer alheios aos anseios dela.
Muitas dessas afirmações, proferidas inclusive por ministros do próprio STF, foram ditas e veiculadas em meio ao calor dos acontecimentos e, por vezes, de forma descontextualizada, passando a ideia de que há basicamente dois tipos bem distintos de julgadores, uns extremamente influenciáveis pela opinião pública e outros totalmente refratários a ela. É evidente que isso causa certa perplexidade ao público em geral e até mesmo aos jovens acadêmicos de direito, que ainda não possuem uma visão global do ordenamento jurídico. Diante disso, parece-me oportuno tecer algumas considerações sobre até que ponto pode ou não a Justiça Penal levar em conta o Clamor Público.
Em tal tarefa, selecionei três tópicos, habituais frequentadores dos noticiários: provas, dosimetria das penas e prisão preventiva.
No que diz respeito às provas (que no final das contas, corresponde à tarefa de estabelecer a culpa ou inocência dos acusados), é praticamente pacífico o entendimento de que o julgador deve ser de todo intransigente com o Clamor Popular, atendo-se exclusivamente à criteriosa e fundamentada análise dos autos, ou seja, dos documentos, laudos e depoimentos que efetivamente foram produzidos no processo (é o chamado principio da persuasão racional ou do livre convencimento motivado previsto no artigo 155 do Código de Processo Penal).
Em contrapartida, quanto à dosimetria das penas entende-se, também sem grandes polêmicas, que o clamor popular pode servir de base para uma punição mais rigorosa, uma vez que o artigo 59 do Código Penal é claro ao dispor que o juiz, ao estipular a pena, deverá considerar, dentre outros fatores, as circunstâncias e consequências do crime, que claramente englobam a maior ou menor repercussão social derivada de resultados ou efeitos não necessariamente ligados àquela espécie de delito.
Por exemplo, quanto ao crime de homicídio, é do senso comum que tirar a vida de outra pessoa constitui fato grave. Contudo, tal gravidade é inerente ao delito em questão. Desse modo, a consequência ou repercussão que autoriza uma punição maior corresponde a algo extraordinário, o que, em termos de clamor popular, pode ser notado em processos envolvendo a morte de celebridades (caso Daniella Peres); jornalistas (caso Tim Lopes); autoridades (caso Juíza Patrícia Acioli) ou que por variados motivos geraram grande comoção social (caso Richthofen e caso Isabella Nardoni).
A referência ao clamor popular também é notada em decretos de prisão preventiva, especialmente naqueles que tem por base a preservação da ordem pública (artigo 312 do Código de Processo Penal). Todavia, oportuno reconhecer que o termo clamor popular é evitado nessas decisões, sendo usualmente substituído por dizeres como: alarma social; desassossego da comunidade; grave repercussão, entre outros. Isso talvez se deva ao desmerecido estigma da expressão por supostamente transmitir a ideia de que o julgador estaria preterindo a boa técnica jurídica para simplesmente jogar para a torcida. Além disso, para piorar a já baixa autoestima da injustiçada expressão, ela costuma aparecer com mais frequência na jurisprudência contrária, resistente ao seu uso nos decretos de prisão preventiva, a qual chega a tratar o clamor popular como se fosse um agente patogênico a ser excluído ou rapidamente eliminado do mundo jurídico.
Ainda quanto à prisão preventiva, outro problema trazido por essa corrente mais refratária aos anseios sociais corresponde à recusa em dar atenção aos fatos que saltam aos olhos nas manchetes dos meios de comunicação. Isso pode ser constatado em excertos de julgados, tais como: clamor popular não pode ser confundido com a repercussão nos meios de comunicação em massa ou clamor popular não se confunde com o sensacionalismo da mídia. Todavia, a repercussão nos meios de comunicação é pautada justamente por um maior ou menor interesse da sociedade em determinada notícia. Desse modo, se o julgador não puder considerar aquilo que é amplamente divulgado pela mídia, creio que a única forma de sentir os clamores ou anseios públicos seria aguardar algum evento revolucionário (talvez uma primavera árabe-tupiniquim), o que, ainda bem, não se coaduna com nosso Estado Democrático.
Em suma, a Justiça Criminal pode levar em conta o clamor popular, mas sempre dentro da margem de atuação prevista na Lei. Os julgadores sensíveis aos anseios sociais não devem ficar encabulados ao usar literalmente a expressão clamor popular, dando a ela uma merecida segunda chance de acepção mais digna. Finalmente, os meios de comunicação são fontes legítimas para se aferir, com serenidade e razoabilidade, os anseios da sociedade, não devendo o julgador fingir ignorar o mundo que o cerca.
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*Antonio Galvão é juiz de Direito, titular da 1ª Vara Judicial e do Tribunal do Júri de Itapecerica da Serra (SP).
Artigo publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico, edição de 24 de fevereiro de 2013.