Conheça a história de Ronaldo, um homem golpeado pelo destino, que não se permitiu errar novamente e permaneceu na cela enquanto colegas fugiam, movido pelo desejo de estudar
“A educação exige os maiores cuidados, porque influi sobre toda a vida”. A frase do filósofo grego Sêneca, cunhada há mais de 2 mil anos, encontra uma explicação quase que perfeita – não só, mas especialmente – para pessoas privadas de liberdade.
Talvez cause espanto a algumas pessoas, mas nos sistemas prisionais, além de criminosos perigosos, homicidas, assaltantes, estupradores, membros de facções, há também pessoas que jamais cometeram um crime antes na vida. Pessoas que, por via das circunstâncias ou talvez por um jogo de azar do destino, se viram, pela primeira vez, envolvidas em um delito, às vezes por influência de terceiros. São momentos nos quais as consequências de uma decisão errada se fazem sentir amargamente.
Exemplos disso, são pessoas primárias, com bons antecedentes, que terminam condenadas por homicídio qualificado, com dolo eventual, depois de matarem pedestres tentando dirigir sob influência de bebida alcoólica. Ou outras que, sem nenhuma passagem policial e por pura lealdade a um “amigo”, ajudam a esconder um cadáver, a desfazer pistas de um crime grave e até mesmo fornecem informações falsas às autoridades policiais, acabando condenados pela Justiça. Há também aqueles que aceitam participar de um assalto a mão armada e acabam presos por roubo majorado (qualificado por violência ou grave ameaça quase sempre exercida com arma de fogo, cuja pena é ainda maior).
A vida, infelizmente, guarda momentos assim aos desavisados. É preciso saber desviá-los, como obstáculos em um jogo raro.
Sêneca já sabia, milênios atrás, do poder transformador da educação sobre indivíduos em situação de conflito com a lei. E não à toa: o filósofo grego era também um dos advogados mais célebres em todo o Império Romano, no Século I da era cristã.
Ainda hoje as lições persistem e encontramos belíssimos exemplos de pessoas que após tomarem decisões erradas e terminaram no cárcere, mesmo tendo à mão a escolha de errar novamente, optaram por escrever uma nova história, uma história de superação.
Em Cruzeiro do Sul, por exemplo, atualmente 5 detentos fazem faculdade, depois de terem passado no ENEM para Pessoas Privadas de Liberdade (ENEM/PPL). Os Juízos criminais acreditam que o desejo dos apenados em transformar suas vidas através dos estudos pode resultar em verdadeiras histórias de superação.
Mas nem sempre foi assim, infelizmente. Em anos pretéritos, por falta da escolta do Instituto Penitenciário do Acre (IAPEN/AC), apenados já precisaram abrir mão do sonho de cursar uma faculdade, mesmo apresentando comportamento exemplar no sistema prisional.
Na matéria especial de hoje, vamos conhecer a história de Ronaldo, 45 (nome e idades fictícios), um homem habilitado a dirigir caminhões que, mesmo desconfiando de que outra pessoa tivesse embarcado algo “proibido” no caminhão, sem sua supervisão, aceitou trazer a carga até a Capital. Ele acabou, no entanto, detido, preso preventivamente e condenado por tráfico de drogas, mesmo sustentando que não sabia o que havia no carregamento – quase 20 quilos de cocaína.
Aceitar aquele fatídico “frete” foi uma decisão da qual Ronaldo teve 9 anos de prisão, em regime inicial fechado, para se arrepender. Uma pessoa que nunca antes fora presa ou entrara em situação de conflito com a lei agora cumpria uma longa pena privativa de liberdade.
Mesmo assim, ele apresentou comportamento exemplar no cárcere e conseguiu prestar e passar no ENEM/PPL, em curso bastante concorrido. No entanto, por falta de escolta do IAPEN/AC, à época, Ronaldo viu a oportunidade de cursar a faculdade lhe fugindo por entre os dedos, sem nada poder fazer.
Mas outro golpe inesperado do destino pediria novamente uma decisão muito importante de Ronaldo. Em data que não iremos precisar nesta matéria, detentos do Complexo Prisional Neri de Oliveira iniciaram uma fuga, em Cruzeiro do Sul, segundo município mais populoso do Acre.
Mesmo vendo os próprios colegas de cela aproveitarem a oportunidade e fugirem juntamente com os demais (todos foram recapturados), Ronaldo permaneceu impassível dentro da cela. Àquela altura, ele já havia refletido muito e estava muito mais ciente das consequências de seus atos. Ele havia aprendido a responsabilidade pelas ações cotidianas e não queria complicar ainda mais sua vida.
Naquele momento, a Justiça alcançava, para além do efeito punitivo, seu caráter pedagógico e a pacificação social.
O juiz de Direito Hugo Torquato, que à época exercia a titularidade da 2ª Vara Criminal da Comarca de Cruzeiro do Sul, o mesmo que condenou o réu por tráfico e negou o pedido do apenado para frequentar aulas na UFAC, por falta de escolta do IAPEN/AC, recorda que se sentiu surpreso e muito feliz pela atitude do apenado. O magistrado finalmente conseguiria rever a decisão de concessão de aulas exteriores para o detento do regime fechado, com elementos concretos, sob supervisão de tornozeleira eletrônica.
Em relação ao estudo externo, o magistrado fala que, por se tratar de presos cumprindo pena em regime fechado, há sempre uma preocupação muito grande do Judiciário de, não apenas garantir o efetivo cumprimento da pena, mas também “assegurar que a sociedade vai estar segura com a segregação de todos os condenados que ainda não atingiram os requisitos legais para progressão de regime”.
“Contudo, essa parece ser uma daquelas situações de importância tão significativa, que a própria vida tem seus métodos de encaminhar os seus atores para o melhor desfecho. E foi o que aconteceu no caso dele. A minha preocupação maior seria que ele tivesse mau comportamento fora da unidade prisional, tentasse fugir ou tivesse qualquer tipo de transtorno”, pondera o juiz de Direito Hugo Torquato.
“E, no entanto, ele conseguiu demonstrar efetivamente que esse não era o caso dele, que não é da personalidade dele. Ele demonstrou efetivamente ter responsabilidade suficiente para essa liberação, que, no caso, foi feita com monitoração eletrônica. Meu sentimento foi de muita satisfação, inclusive pela oportunidade de poder rever aquela decisão pra concessão de estudo externo com elementos concretos, sob monitoração eletrônica.”
Vale dizer que o réu cumpriu toda pena privativa de liberdade e se formou no curso superior, com diversos elogios e menções honrosas da Instituição Federal de Ensino Superior, sem jamais ter tentado romper a tornozeleira eletrônica. Hoje ele exerce orgulhoso a profissão e está bem inserido no mercado de trabalho, literalmente recomeçando a vida, depois de pagar toda a pena privativa de liberdade.
Procurado pela reportagem, ele preferiu não se identificar, nem comentar sobre aquilo que agora “é passado”, preferindo não se expor nem expor a família. Ele se restringiu a comentar o que todos sabem: ainda há muito preconceito contra egressos do sistema prisional que tentam vagas no mercado.
“Isso foi algo do passado, que ficou pro passado. Eu preciso preservar a minha imagem, minha família. (…) Eu já tive muita dificuldade pra me inserir no mercado e, você sabe como são as empresas, né?”.