O objetivo maior dos grupos reflexivos é promover responsabilização com resgate da auto estima, identidade, bem como os valores pessoais e sociais, garantindo o acesso às políticas públicas necessárias a interromper as vulnerabilidades que possam ser causas subjacentes aos delitos.
Recomeçar, segundo o dicionário, é verbo transitivo direto e indireto, que significa começar de novo, refazer depois de interrupção, retomar. Assim foi o clima durante o encerramento de uma turma dos grupos em cumprimento de alternativas penais, nesta quinta-feira, 26, no auditório do Central Integrada de Alternativas Penais (Ciap) do Instituto de Administração Penitenciária do Acre (Iapen/AC).
O objetivo maior dos grupos reflexivos é promover responsabilização com resgate da auto estima, identidade, bem como os valores pessoais e sociais, garantindo o acesso às políticas públicas necessárias a interromper as vulnerabilidades que possam ser causas subjacentes aos delitos.
Geralmente os encontros são separados por tipo de delito, mas para este último encontro agruparam reeducandos entre homens e mulheres, acusados de diversos crimes como tráfico, furto, acidentes de trânsito, porte de arma, violência doméstica e outros.
A juíza-auxiliar da Presidência Andrea Brito participou do evento, levando uma palavra de reflexão aos reeducandos. A magistrada destacou que o sistema prisional do Acre aponta para um déficit de mais de 1300 vagas, assim a Central Integrada de Alternativas Penais (CIAP) tem um papel fundamental nesse cenário.
“A Ciap atende pessoas que praticaram crimes de baixo potencial ofensivo, com penas inferiores a quatro anos. Mas, as pessoas que praticam esses mesmos crimes reiteradas vezes, terminam inseridas no sistema prisional. A pratica incessante de crimes de baixa potencialidade geralmente está associada à questões transversais com uso abusivo de álcool e outras drogas, transtornos mentais, laços familiares fragilizados, padrões culturais que contribuem para o aumento das expressões violentas do conflito; dentre muitos outros. As atribuições das Ciap’s são múltiplas, uma delas é o desencarceramento, possibilitando ao sistema judiciário encaminhar as pessoas para cumprir suas obrigações em liberdade, fazendo com que se responsabilizem, de forma educativa, pelos crimes cometidos, ajudando, dessa forma, a comunidade “, explica.
O Brasil está em quarto lugar dentre os países que mais encarceram no mundo hoje, de acordo com as informações consolidadas pelo Departamento Penitenciário Nacional (2015), o que significa um aumento de mais de 80% da população carcerária nos últimos dez anos. Importa destacar que cerca de 18% das pessoas foram detidas por crimes cuja lei prevê pena de até quatro anos, o que indica o direito a uma pena substitutiva à prisão.
A Resolução 288, aprovada pelo CNJ em 2019 e que define a política institucional do Judiciário para as alternativas penais, muda o enfoque para uma abordagem restaurativa em substituição à privação de liberdade, com as modalidades e os mecanismos para tanto. Espera-se impactar, significativamente, a realidade de nosso sistema penal e prisional, promovendo o acompanhamento da medida de responsabilização ao tempo que promove o acesso a direitos.
Esta nova concepção de alternativas rompe com uma concepção de expansão de controle penal, buscando atuar para: o incentivo à participação da comunidade e da vítima na resolução de conflitos; a responsabilização da pessoa a quem se atribui uma medida e a manutenção do seu vínculo com a comunidade, com a garantia de seus direitos individuais e sociais; e a restauração das relações sociais quando desejável pelas partes. “Parte significativa das pessoas que chegam aos serviços de acompanhamento de alternativas penais apresentam vulnerabilidades sociais por falta de acesso a direitos fundamentais e políticas públicas, o que determina a necessidade de uma abordagem centrada na afirmação da autonomia, acesso aos direitos e políticas públicas, sem caráter obrigatório a partir das demandas apresentadas pelas pessoas”, finaliza a magistrada.
Na oportunidade, conhecemos a história de duas mulheres Bianca e Clara, nomes fictícios para preservar a identidade delas.
“Seguir um novo caminho”
Bianca é casada e tem três filhos, mas apenas dois estão vivos, pois um cometeu suicídio aos 17 anos, por problemas com drogas. No dia dessa entrevista, era aniversário da filha. O marido é usuário e ex-detento por tráfico. Bianca foi presa em flagrante quando uma ação policial procurava drogas na sua casa. Ela contou que sabia da atividade ilícita do marido, mas que não tinha conhecimento que ele guardava o ilícito em casa. Ao ser presa, passou por audiência de custódia, foi condenada em um ano e nove meses, mas liberada para cumprir em liberdade. O marido cumpriu pena de três anos e três meses em regime fechado, mas está solto há poucos dias.
Durante o tempo que o esposo esteve em regime fechado, Bianca fazia visitas, pois nas palavras dela “não podia largar, pois é o pai dos meus filhos”, entretanto denuncia que o marido não é aberto ao diálogo e por isso tem dificuldades na comunicação.
Infelizmente essa situação é mais comum do que se imagina e não contraria a estatística, pois Bianca é mais uma mulher que substancia as números de violência doméstica. Após esses fatos, dentro dela já existe uma decisão, mas por fora, esbarra na realidade de milhares. “Agora eu decidi que [enfática] quero me separar, só que ele não quer. Fica brabo! Já fui orientada que tenho que me libertar, mas só temos uma casa e pra onde eu vou com meus filhos? Eu não sei o que fazer. Essa é a minha história”.
Bianca participou das reuniões do grupo reflexivo e quando perguntamos sobre o que ela aprendeu com as reuniões, ela resume numa curta frase “sobre a vida”. Ela faz uma pausa e continua “achei bom, porque a gente fica mais atenta, aprende sobre não fazer coisas erradas, seguir um novo caminho e ter um futuro melhor. Errar, a gente erra né? Mas temos que refletir e fazer um recomeço”.
Bianca continua falando sobre sua experiência e impressões nas reuniões do grupo reflexivo. “Gostei muito das palestras e por mim, participaria mais vezes. Gostei bastante das palavras da juíza. Estou aguardando também a abertura de inscrições para os cursos profissionalizantes. Parabenizo pelo atendimento e que esse trabalho continue, pois é muito útil”.
Como a maioria das pessoas Bianca carrega sonhos. Ela revela que gosta da língua inglesa e almeja ser professora de inglês, mas atualmente faz trabalhos temporários de faxina para manter o sustento. Contudo o sonho de entrar para a docência está mantido e prossegue na corrida em busca do objetivo.
“Isso não é fim, é só o começo”
Nossa segunda personagem é Clara, outra reeducanda que encerra mais esse ciclo com igual decisão de um recomeço. Ela tem uma filha e a mãe está com câncer em estado terminal. Ela confidencia que na primeira reunião não gostou muito da ideia, mas a cada encontro as palavras ouvidas funcionaram como uma semente que germinou na sua cabeça e floresce em forma de uma nova determinação. “No inicio não gostava muito, mas a cada encontro, passei a gostar. Isso reflete muito na minha compreensão de mundo, sobre ter sonhos.”
Clara faz uma comparação sobre a eficácia dos encontros, “de zero a dez, considero dez. Não sou a mesma desde a primeira reunião”, comenta. Ela fez questão de ler uma das frases ditas durante a palestra, que a marcou e vai levar pra vida. “Escolha uma nova história sobre a sua vida e acredite nela. Isso não é fim, é só o começo”. Chorando e muito emocionada completa “essa palavra mexeu muito comigo”.
Caráter ressocializador e cultura da não violência
Uma das responsáveis pelo atendimento, acompanhamento, fiscalização do cumprimento das penas, a assistente social Diana Farias destacou que os encontros “são essenciais porque resgatam o sentido educativo da pena e o caráter ressocializador. Contribui para a cultura da não violência e principalmente a não reincidência criminal”, finaliza.
Aproximadamente 30 reenducandos participaram desta atividade e ouviram palavras da equipe técnica multidisciplinar constituída por profissionais das áreas jurídica, psicológica e serviço social. A equipe técnica é responsável pelo atendimento, acompanhamento, fiscalização do cumprimento das penas e desenvolvimento de atividades, ações e articulações voltadas à auto responsabilização dos cumpridores de penas, com palestra de profissionais e convidados. Os encontros são quinzenais durante seis meses.
Ciap: uma alternativa para as penas alternativas
Com o enfoque na política de desencarceramento e intervenção penal mínima, foi implantado desde 2019 na capital a primeira Central Integrada de Alternativas Penais (CIAP) do Acre, por meio de parceria entre o Governo do Estado, através do IAPEN e o Tribunal de Justiça.
Além de realizar na prática a política judiciária do Fazendo Justiça como referência nacional, trazem instrumentos como este, que é um equipamento que acaba sendo essencial na política de desencarceramento, daquelas pessoas que não precisam do cárcere, correspondendo ao mesmo tempo com o efetivo cumprimento dos seus compromissos com a justiça.
Apresentando números que demonstram a economia aos cofres públicos, quando se opta pelas alternativas penais em casos cabíveis, a juíza auxiliar da Presidência do TJAC, Andrea Brito, pontuou que “a Central de Alternativas Penais é uma das ferramentas mais potentes, pois dá ao juiz segurança na aplicação da pena, já que será gerenciada por uma equipe multidisciplinar, com monitoração efetiva e orientações, para que não haja sensação de impunidade, ao terem suas penas substituídas”, afirma.
Os trabalhos são orientados para a restauração das relações e promoção da cultura da paz, a partir da responsabilização com dignidade, autonomia e liberdade. Além disso, seguem a Resolução do CNJ nº 288/2019, que instituiu a Política Nacional de Alternativas Penais e a Recomendação n. 124 do CNJ, 07 de janeiro de 2022.
Dentre as alternativas penais abrangentes estão as penas restritivas de direitos; transação penal e suspensão condicional do processo; suspensão condicional da pena privativa de liberdade; conciliação, mediação e técnicas de justiça restaurativa; medidas cautelares diversas da prisão; e medidas protetivas de urgência.
A Ciap trabalha com uma grande rede de parcerias de políticas públicas estadual e municipal para inserção social do público, com instituições para o cumprimento das alternativas penais, sociedade civil, universidades, articulações com o Sistema de Justiça, entre outros. As alternativas penais são demandadas pelo Poder Judiciário, que vai determinar, por exemplo, a quantidade de horas de serviço comunitário que uma pessoa deverá cumprir.
O trabalho consiste em ouvir, atender, acolher e entender quem é o sujeito que chegará até a Ciap, sendo que os serviços serão determinados junto com a pessoa, através de uma entrevista psicossocial, onde serão levantadas as condições, qualificações, horários e disponibilidade da pessoa para o cumprimento das horas de serviço comunitário.
As Ciap’s também acolhem homens em situação de violência doméstica, nos Grupos Reflexivos de Gênero, nas quais são trabalhados temas específicos sobre a Lei Maria da Penha, oficinas de responsabilização e uma gama de assuntos relacionados a gênero, família e crimes domésticos.
Ciap em números
A Central Integrada de Alternativas penais já atendeu desde sua criação em 2018 mais de 2 mil pessoas, em sete tipos de grupos reflexivos divididos em violência doméstica, acidentes de trânsito, dependência química, tráfico de drogas, mulheres, grupo de Prestação de Serviço a Comunidade (PSC), e outros delitos.
Quantidade de pessoas atendidas desde o início da CIAP: 2.074
Total de pessoas destinadas para Prestação de Serviço a Comunidade: 558
Total de pessoas atendidas em Grupos Reflexivos: 1.005
Este Modelo de Gestão, desenvolvido através de consultoria realizada via parceria entre Departamento Penitenciário Nacional e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, se pauta pela necessidade de uma nova pactuação federativa e integral do Sistema de Justiça pela redução do encarceramento e criação de mecanismos que favoreçam a resolução de conflitos pela comunidade afetada, a partir da construção de redes e políticas públicas que agreguem metodologias e equipes qualificadas para o desenvolvimento das diversas modalidades de alternativas penais.