Magistrados do Judiciário do Acre palestraram para 292 agentes socioeducadores, na manhã da quarta-feira, 8. Conversa foi permeada por questionamentos sobre a importância de respeitar a lei e a dignidade da pessoa humana
“Controle da ordem local justifica procedimentos que não estão de acordo com a constituição?”, questionou a juíza de Direito do Judiciário do Acre, Andréa Brito, durante palestra ministrada na manhã desta quarta-feira, 8, na Escola Estadual de Ensino Médio Armando Nogueira, para 292 alunos agentes socioeducadores do Instituto Socioeducativo do Estado do Acre (ISE).
A atividade foi inserida dentro da formação dos novos servidores e servidoras do ISE com objetivo de prevenir condutas de tortura e tratamento degradante dentro dos ambientes onde são internados adolescentes e jovens que cometeram atos infracionais.
Além da juíza de Direito titular da Vara de Execuções Penais e Medidas Alternativas da Comarca de Rio Branco conversaram com os alunos e alunas o juiz de Direito Robson Aleixo, titular da Vara de Delitos de Organizações Criminosas do Estado do Acre e coordenador do Grupo de Monitoramento e Fiscalização Carcerária e Socioeducativo (GMF) do Tribunal de Justiça do Acre (TJAC), assim como, o promotor Walter Teixeira, coordenador do Grupo de Atuação Especial na Prevenção e Combate à Tortura do Ministério Público do Acre (MPAC).
Durante a palestra os magistrados do Judiciário do Acre e o promotor de Justiça instigaram, questionaram os agentes, para estimular a reflexão desses novos agentes quanto à postura que adotarão no trabalho. Conforme esclareceram os palestrantes e a palestrante a função desses novos servidores públicos está expressa e clara no nome do cargo: agentes socioeducadores.
Direitos e deveres
O ponto de partida da conversa se fundamentou na perspectiva de que os espaços de privação de liberdade são ambientes potencialmente propícios à ocorrência de violações de direitos humanos, como a tortura.
Conforme esclareceram os palestrantes e a palestrante o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) aponta, em seu art. 95, que as entidades governamentais e não governamentais responsáveis pela execução das políticas socioeducativas deverão ser fiscalizadas pelo Poder Judiciário, pelo Ministério Público e pelos Conselhos Tutelares.
Complementarmente, o art. 18, §2º, da Lei do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (denominada Sinase), aponta para a necessidade de que ocorram avaliações periódicas dos Planos de Atendimento Socioeducativo, sendo que os atores do Sistema de Justiça devem participar ativamente desse processo.
As Regras das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade (Regras de Havana), adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, trazem, igualmente, em seu corpo legal a importância de se realizarem inspeções regulares e não anunciadas nos estabelecimentos onde se encontrem jovens privados de liberdade.
“Sendo notável o cuidado do legislador, tanta na seara nacional como internacional, em determinar e regulamentar a corresponsabilidade entre os atores do Sistema de Garantia de Direitos (SGD) no constante monitoramento e avaliação das políticas públicas judiciárias destinadas à infância e a juventude. No bojo delas, se incluem as ações destinadas aos(às) adolescentes e jovens aos quais se atribua a prática de ato infracional e que se encontrem em cumprimento de medida socioeducativa”, explicou Andréa.
É com base nesse compromisso legal que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou, em 2020, a Resolução nº 326, atualizando as definições da Resolução CNJ nº 77/2009. Essa normativa regulamenta as tarefas de monitoramento e fiscalização dos espaços de privação de liberdade de adolescentes, objetivando parametrizar as inspeções judiciais. Ou seja, no intuito de garantir a efetivação dos direitos referentes à vida, ao respeito, à dignidade e a inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral dos(as) adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, e a fim de zelar pelo princípio da prioridade absoluta. A atualização da Resolução CNJ nº 77/2009 visa fortalecer e uniformizar os parâmetros de fiscalização judicial nos estabelecimentos e entidades de atendimento ao adolescente autor de ato infracional, citou a magistrada.
“Nossa função não é somente cuidar do encarceramento, é cuidar da socioeducação do adolescente. Quando a gente deixar de se preocupar, de se importar estaremos prestando um serviço degradante, descumprindo nossa obrigação funcional e legal”, comentou Aleixo.
Cidadania invertida
Já a juíza Andréa citou diversos normativos e convidou os presentes a refletirem sobre a situação dos jovens internados, constituídos em sua grande maioria por pessoas negras e pobres, que irão ter as primeiras oportunidades de vida, de acesso à cultura e a educação, apenas após serem internados, privados de liberdade.
Ela mencionou que a pesquisa do Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP em 2018 apontava o acre como 2º estado com maior índice de superlotação de adolescentes privados de liberdade com mais de 500 adolescentes internados para 271 vagas, ocupando o estado de Pernambuco o 1º lugar. Afirmou que foram muitos avanços de lá pra cá e hoje o socioeducativo conta com 163 adolescentes. Com a redução da população privada de liberdade, vem sendo possível verdadeiramente ofertar a socioeducação com programas de capacitação, estudo, cultura e esporte nas unidades.
“Nosso país alicerça aspirações enquanto sociedade fundada no Estado democrático de direito ao mesmo tempo em que fomenta o avanço social com respeito aos direitos fundamentais e a dignidade humana, sendo dever indelével das instituições, especialmente do Judiciário enquanto guardião da Constituição, zelar para que as ações apontem para um norte civilizatório, não apenas rechaçando desvios, mas atuando para transformar o presente que almejamos”, disse Brito.
Essa ação ainda integra um dos vários eixos de atuação do Programa Fazendo Justiça, instituído pelo CNJ com o Programa das Nações Unidades para o Desenvolvimento (PNUD) e o apoio do Departamento Penitenciário Nacional (Depne), para enfrentar o estado inconstitucional dentro do Sistema Penal. Assim, dentro dessa enorme frente de trabalho, tem-se as inspeções judiciais e o enfrentamento da tortura em unidades e programas socioeducativos, tema central da atividade de formação dos atores do Sistema de Justiça.
O promotor da Justiça apresentou um panorama sobre as relações de poder que constituem historicamente a sociedade. “Aqui ninguém é mais do que ninguém, aqui a gente está para cumprir a lei. Não queremos robôs, se fosse só para fazer a segurança colocaríamos robôs, câmeras e sistemas informatizados. Precisamos de pessoas capacitadas que respeitem a vida e a dignidade humana. É preciso enxergar os jovens como pessoas semelhantes”, enfatizou Teixeira.
Em sua fala, o membro do Ministério Público acreano ainda apresentou dados que comprovaram que o trabalho preventivo gera bons frutos, com a redução de procedimentos de investigação e punição de agentes públicos por cometer práticas de maus-tratos e tortura. Segundo informou Walter, em julho de 2022 existiam um total de 34 notícias fatos encaminhados ao Grupo de Atuação Especial na Prevenção e Combate à Tortura do MPAC contra agentes públicos. Então, com seis meses de trabalho, em dezembro foram apresentadas somente cinco notícias fatos.
Na tabela abaixo, produzida pela promotoria especializada é possível notar, que após seis meses de atuação preventiva, todos os procedimentos reduziram em dezembro.
Socioeducar
Então, repetindo o que os magistrados já tinham abordado, o promotor concluiu: “Nós temos que nos adequar a constituição e a lei e não o inverso. Não estamos falando para ficar passando a mão na cabeça, mas cumprir a lei e atuar respeitando à dignidade humana”.
O agente há 12 anos e diretor do curso de formação, Daniel Cardoso, também pegou o microfone para falar sobre a importância de empreender atividades socioeducativas para o jovens e adolescentes que estão internados. “Nosso papel é muito importante para esses adolescentes. A oportunidade que vamos dar para eles é divisor de águas na vida deles. É importante a socioeducação para mudança de vida dos nossos jovens”.
A agente Sammili Bezerra, formada em Direito, com o Trabalho de Conclusão de Curso onde debateu a função ressocializadora da pena em detrimento da função retributiva, avaliou como positiva a palestra. “Foi uma contribuição importantíssima para todo o corpo de alunos, pois ampliou o nosso entendimento acerca das competências do agente socioeducativo e da importância de atuarmos sempre com respeito em conformidade com a lei. Estamos certos de que lidaremos com um problema extremamente complexo, diante do qual precisaremos equilibrar a promoção de segurança e a dedicação ao propósito de oferecer condições de mudança aos adolescentes. Em nome corpo de alunos, agradeço aos excelentíssimos juízes, ao promotor de Justiça e demais servidores que estiveram conosco, colaborando para a nossa boa formação.