O debate aborda o crescimento do número de pessoas em estado de extrema pobreza e acometidas por múltiplas vulnerabilidades
Nesta sexta-feira, 26, foi realizada Audiência Pública sobre Pessoas em Situação de Rua na Assembleia Legislativa do Acre (Aleac). Representantes do Tribunal de Justiça do Acre (TJAC) contribuíram com diálogo estabelecido com demais Poderes Públicos e organizações sociais, a fim de criar respostas para essa problemática com a garantia de direitos.
A sessão foi presidida pela deputada Michelle Melo, que é líder do governo e autora do requerimento que deu origem a audiência pública. Compuseram o dispositivo de honra a desembargadora Waldirene Cordeiro, o desembargador Élcio Mendes, o juiz-auxiliar da Presidência Giordane Dourado e a juíza Andrea Brito. Também estavam presentes a juíza Isabelle Sacramento, a representante do Conselho Nacional de Justiça, Pâmela Villela e a servidora Mirlene Thaumaturgo.
Em seu pronunciamento, a deputada enfatizou que essa é a primeira vez que se coloca representantes de pessoas em situação de rua na tribuna da Aleac: “é primeira vez que o povo está na Casa do Povo para falar, por isso espero que seja um momento de muitas resoluções”.
O ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Reynaldo Fonseca, que retorna ao estado acreano para cumprir uma agenda no Poder Judiciário, falou sobre o compromisso de construir um país melhor e a necessidade de apontar caminhos para os desafios atuais. “Todos nós que estamos no aparelho estatal estamos em serviço público, a serviço da comunidade. A nossa Constituição preconizou uma sociedade livre, justa e fraterna, então a partir desse tripé é preciso reconhecer as pessoas sem habitação, sem acesso à agua potável. Isso tem que nos incomodar, precisamos ser solidários e intervir para mudar esse Estado de Coisas”, falou o convidado.
Dando continuidade à agenda, a procuradora de Justiça Patrícia Rego alertou que não há um censo para pessoas em situação de rua, porque o IBGE, responsável pelas estatísticas nacionais, utiliza como parâmetro a moradia. “Então a invisibilidade para o Poder Público é carimbada pela própria atuação estatal. Deste modo, é preciso atualizar o plano à realidade local. O Estado e os municípios podem ter esse protagonismo, porque com esses dados poderemos cumprir metas, trazer para o orçamento do Estado o investimento em políticas adequadas”.
A desembargadora Waldirene Cordeiro, coordenadora da Justiça Restaurativa, conclamou o engajamento das instituições para realizarem acolhimentos e tratamentos diferenciados, visando alcançar as vulnerabilidades da parcela de pessoas que estão com uma disfunção social grave. “É preciso deixar o plano da narrativa, da reafirmação de conceitos, para a ação efetiva, que mitigue as agruras dessa média de 400 pessoas em situação de rua na capital acreana” disse.
Cordeiro relembrou que há bem pouco tempo atrás, as pessoas em situação de rua tinham dificuldades de acessar o Judiciário por não ter um comprovante de endereço, mas esses entraves foram sendo percebidos e a Resolução n° 425/2021 foi instituída para que a inclusão se aprimorasse, bem como para que outras ações fossem editadas, a exemplo do que é realizado pelo Projeto Cidadão, que há cerca de 30 anos desenvolve uma atuação desburocratizada.
Em consonância, o juiz Giordane Dourado expôs iniciativas recentes do Judiciário compromissadas com os Direitos Humanos em atenção a esse público, dentre elas a acessibilidade, a identificação dos processos de pessoas em situação de rua, acompanhamento multidisciplinar em rede, emissão de documentação civil, Justiça Restaurativa, atendimentos itinerantes, criação de comitês multiníveis, capacitação de magistrados e servidores.
A juíza da Vara de Execução Penal e Medidas Alternativas (Vepma), Andrea Brito, defendeu que o Sistema de Justiça deve olhar além do fato cometido para que não haja a criminalização da pobreza. Para isso, apresentou um estudo de caso de um processo atendido em sua unidade. O cumpridor da medida alternativa em regime aberto de Rio Branco tem 45 anos, é usuário abusivo de crack. Ao longo da sua vida, foi condenado por nove furtos, de itens como um par de sandálias, três desodorantes, uma lata de azeite e o último, cometido em 2020, de uma bicicleta. A magistrada concluiu apresentando a comparação do valor gasto na manutenção desse indivíduo no presídio, com o custo da recuperação da dependência química e ressocialização.
“O que o Estado tem para nos amparar enquanto viventes de rua?”
A fala mais marcante do dia pertence ao Hudson Nunes, representante do Movimento Acreano das Pessoas em Situação de Rua (MAPSIR). Ele enfatizou a dificuldade de acesso a programas e serviços de saúde, segurança, trabalho e previdência social. “Muitas pessoas só veem o assistencialismo. Nós não buscamos simplesmente um prato de comida, a gente precisa de dignidade. É preciso acabar com o estigma que rotula todos nós como incapazes, vagabundos e bandidos”, afirmou.
Denunciou ainda a precariedade do atendimento do Centro Pop, onde tem faltado até água. A rotatividade de funcionários terceirizados é outro problema, pois quando esses começam a compreender a demanda, o contrato acaba e eles são mandados embora. Por fim, destacou a importância do atendimento psicossocial, onde a população de rua é enxergada em suas individualidades no tratamento da saúde mental, mesmo sendo a dependência de álcool e drogas comum a muitos.
“Nada para nós, sem nós. Cadê as leis de incentivo a igualdade social e de auxílio-moradia? O que o Estado tem para nos amparar enquanto vivente de rua? Como o Estado pode ajudar a população em situação de rua? O que os deputados podem fazer por nós? O que pensam para construir políticas públicas de acolhimento eficaz para que sejamos vistos como pessoas humanas? Queremos ser ouvidos para que seja colocado em prática o Plano Estadual para Pessoas em Situação de Rua, que não é de governo, porque temos a nossa lei estadual, precisamos de políticas de Estado”, disse Hudson ao dedicar seu discurso a muitos conhecidos que faleceram sem poder ver esse momento.
Outras demandas apresentadas foram: aumento da tuberculose, hepatites virais, HIV; ataque a trans e travestis em seu ponto de trabalho; o aumento das mulheres violentadas; a violência policial contra pessoas em situação de rua; a fragilidade do Consultório de Rua e Centro Pop; os CAPs sem estrutura para atender os usuários; falta de acompanhamento dos usuários quando saem das casas de acolhimento; preconceito e intolerância; falta de programas de incentivo a autonomia; inclusão do atendimento as pessoas em situação de rua nas delegacias, UPAs e SAMU.
Hudson foi aplaudido de pé por todos os presentes. Em seguida, Leonildo Monteiro, representante do movimento nacional das pessoas em situação de rua, apresentou ações em andamento em outras cidades brasileiras, como cozinhas comunitárias e hotéis sociais.
Rubi Rodrigues, representando a comunidade transexual, chamou atenção a exclusão e violência: “entre a população em situação de rua está pessoas LGBTQIA+ que foram expulsas de casa, pessoas negras discriminadas, vítimas de violência doméstica, usuários de drogas ameaçados por organizações criminosas, pessoas que sofrem com a miséria e a desigualdade, com a falta de oportunidades. Quem vai resolver isso?”.
A oportunidade possibilitou o levante de outras falas e abordagens, que elencaram questões críticas sobre a transformação social. Representantes públicos disponibilizaram seus serviços e novas reflexões abriram o caminho para mais mobilizações e propostas que atendam as pessoas em situação de rua.