O histórico da Desembargadora Miracele de Souza Lopes Borges, no Conselho da Magistratura, possui extensas 121 páginas. Todas elas bem preenchidas pelos relevantes serviços que ela prestou ao Estado do Acre por mais de 40 anos, à exceção de uma: a folha referente às faltas aparece praticamente vazia, com uma única informação, “nada consta”.
Tanto abraçou a carreira, e a ela compareceu com devoção, que já disse durante Sessão do Tribunal Pleno “sou casada com o Judiciário”. A declaração revela uma união de mais três décadas, que começou no dia 12 de dezembro de 1977, quando ela ingressou na Magistratura Acreana.
Mas no âmbito estadual, ela já está no serviço público desde 1962, quando exerceu o cargo de agente administrativo do extinto Território Federal do Acre. A toga lhe coube tão convenientemente durante todos esses anos, que só irá deixar de vesti-la nesta sexta-feira (15), quando deixará oficialmente as funções do desembargo, em virtude de sua aposentadoria compulsória, ao completar 70 anos no próximo domingo (17).
Foi Machado de Assis quem, na obra Quincas Borba, escreveu: “que abismo há entre o espírito e o coração”. Contudo, a frase não poderia ser aplicada à Desembargadora Miracele, cuja trajetória de vida se confunde com a do Judiciário e do Estado.
Ao retirar de seus ombros a toga que ostentou por décadas – só de desembargo, em 2011, ela celebra 25 anos -, Miracele Lopes deixa um legado de julgamentos memoráveis, mas principalmente de uma paradigmática postura ética e uma conduta moral irretocável.
Nasceu em Xapuri, mas se projetou para muito além da terra de Chico Mendes, tendo recebido a Medalha do Mérito da Magistratura, em caráter nacional, conferida pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB); honrarias militares, condecorações e homenagens em diversas cidades acreanas em reconhecimento a sua profícua carreira e ao engrandecimento do Judiciário Acreano.
Se seu ofício pode ser considerado um sacerdócio, sua oração foi o trabalho, assentado no lema do bem servir e sectário da verdade. Foi nesse altar que venerou a deusa da justiça, ainda que sob pena de sacrifícios pessoais e das intempéries da vida.
Ocupou neste e naquele os mais importantes cargos. De 1962 a 1977, trabalhou como agente administrativo do extinto Território Federal do Acre. Também foi Contadora Geral do Estado do Acre, Procuradora-Geral do Estado, Procuradora da Fundação do Bem-Estar Social (FUNBESA) e Procuradora da Companhia de Saneamento e Esgoto do Acre (SANACRE). Além disso, destacou-se como sendo a primeira Secretária de Fazenda e de Administração do Brasil.
Na Magistratura Acreana foi Juíza Temporária da 2ª Seção Judiciária e Juíza de Direito Titular da Comarca de Brasiléia. Depois, foi Juíza efetiva da classe de Juiz de Direito do Tribunal Regional Eleitoral do Acre (TRE-AC) e assumiu a titularidade da 2° Vara Cível da Comarca de Rio Branco.
Em seguida, presidiu a Associação dos Magistrados Acreanos (ASMAC); e foi eleita Presidente do Tribunal de Justiça para o biênio 1991/1993. Foi Diretora da Escola Superior da Magistratura do Acre (ESMAC) no biênio 1995/1997. Também assumiu a Corregedoria Geral da Justiça do Tribunal de Justiça Acreano no biênio 1997/1999.
Ainda pelo TRE-AC, foi também Juíza efetiva da classe de Desembargador, Vice-Presidente e Corregedora Regional do TRE-AC, nos períodos de 1987/1989 e 2000/2001, e Presidente do TRE-AC, nos períodos de 1989/1991 e 2001/2003.
Presidiu a Câmara Cível do TJAC nos biênios 1993/1995 e 2009-2011, e é a atual Presidente do Órgão Julgador para o biênio 2011-2013.
Juíza de todos e professora de muitos, lecionou várias disciplinas dos cursos de Direito da Universidade Federal do Acre e da União Educacional do Norte, em Rio Branco.
No primado de sua experiência jurídica e amadurecimento pessoal, Miracele Lopes deixa seu ofício no Tribunal de Justiça do Acre. Ao fim e ao cabo, como ela mesma diz, "com a convicção de que combateu o bom combate, terminou a carreira e guardou a fé", mas também de ter cumprido com proeza a missão que soube transformar em apostolado.
Homenagens
Os servidores da Câmara Cível, com quem a Desembargadora trabalhou nos últimos anos, fizeram questão de lhe prestar uma singela homenagem:
"Desembargadora Miracele, muito obrigada por sua ajuda nos conhecimentos e ensinamentos a nós repassados que, com certeza nos fortaleceram; obrigada pelo carinho sempre presente quando de nossos erros, mostrando-nos a forma correta; e, acima de tudo, pela preocupação constante com o dever de bem servir àqueles que recorrem à Justiça em busca de seus direitos."
O Presidente do TJAC, em exercício, Desembargador Samoel Evangelista, destacou a trajetória de Miracele Lopes:
“São quase cinco décadas de atuação no setor público e mais de três décadas só de magistratura. A obra de Vossa Excelência será perene, pois é um exemplo de produtividade e de segurança jurídica nas decisões que profere. E soube, o que não é fácil, estabelecer, durante todos esses anos, relações permanentes, seja com os seus colegas de 2º Grau, seja com servidores deste Poder, com seu jurisdicionado, amigos e colegas. Vossa Excelência cumpriu muito bem sua missão. Por isso lhe parabenizo pelo que foi, é e continuará sendo para o Poder Judiciário do Estado do Acre."
O Procurador-Geral de Justiça, Sammy Barbosa, enalteceu a obra da Magistrada, que considerou como exemplo:
“É preciso registrar toda importância que a senhora tem para o Judiciário e para o Estado do Acre em toda a sua dimensão. Vossa Excelência contribuiu para a formação do nosso mundo jurídico neste Estado, sendo para todos nós um grande exemplo de pessoa e de referência jurídica. Se perguntassem qual é a sua obra, eu diria que é uma catedral, construída com a sua inteligência e sua integridade. Tenha certeza da nossa admiração e gratidão em meu nome e do Ministério Público do Estado do Acre."
Nesta semana, durante Sessão da Câmara Cível, o advogado Luiz Saraiva também prestou homenagem à Desembargadora Miracele Lopes, que presidiu o Órgão Julgador pela terceira vez:
“Senhora Desembargadora, com essa última oportunidade que eu tenho para falar, tendo Vossa Excelência aqui presente, quero fazer uma homenagem, talvez não seja só minha, mas de todos os advogados antigos que militam por este Tribunal. Quero dizer do orgulho, da satisfação que sempre tivemos com a sua presença, que nos abrilhantou com os seus votos, até os contrários aos interesses dos meus clientes, mas que com a sua sabedoria, sua inteligência e sua firmeza abrilhantaram muito este Tribunbal. Que Vossa Excelência possa, ao final da justa aposentadoria, e ao final dos seus dias, dizer como o velho poeta nordestino Otacílio Alencar: 'Senhor, errei e acertei, mais acertos que erros por esta vida afim, mas no momento final e derradeiro, ao invés do juiz severo e justiceiro, derramai misericórdia sobre mim' ” .