Por José Lucio Munhoz*
Joseph McCarthy foi um senador americano que, nas décadas de 1940 e 1950, ficou celebrizado por perseguir quem ele e seu grupo julgava ter tendências comunistas. Contra tais pessoas — normalmente políticos, cientistas, artistas, sindicalistas e escritores — o senador realizava suas próprias “investigações” e apresentava suas denúncias públicas, incentivando alguns meios de comunicação a divulgá-las, destruindo reputações, imagens, carreiras e vidas. Vendia-se, por rumores, o medo ou o “impatriotismo” a respeito da atuação de suas vítimas, sendo que uma delas, o cientista David Bohm, acabou mudando-se para o Brasil por alguns anos, onde foi professor de física pela USP. O perseguido mais famoso desse movimento, também adotado por John Edgar Hoover, primeiro diretor do FBI, talvez tenha sido Charlie Chaplin, que acabou exilado dos EUA. Depois de uma década, os desvios do senador acabaram sendo publicamente desmascarados e tal meio de caça às bruxas acabou sendo denominado como “macartismo”.
No Brasil o patrulhamento ideológico também fez das suas, em especial durante a ditadura militar, gerando todas as perseguições e malefícios que bem conhecemos. Mesmo na atualidade há notícias de utilização de tal procedimento, com difamações ou insinuações plantadas na imprensa, inclusive no chamado esquema “Carlinhos Cachoeira” e, diga-se, por razões nada ideológicas.
Uma das garantias primeiras de cada cidadão é não ser julgado por um tribunal de exceção, contar com o princípio do juiz natural (aquele previamente designado pelo sistema de competência e não especialmente designado para um julgamento pessoal) e ver respeitado o devido processo legal, onde se permita um livre juízo a respeito dos fatos. Para isso, é fundamental que se garanta a independência do juiz que vá analisar o processo e emitir o seu julgamento, livre de pressões, ameaças ou perseguições.
O magistrado necessita de autonomia, independência e liberdade para exercer a sua livre convicção de como melhor resolver o caso sob sua apreciação. Muito além de uma garantia pessoal do exercício profissional do juiz, isso é de importância fundamental para que a sociedade tenha um Poder Judiciário capaz de efetivamente fazer justiça, preservando a igualdade de tratamento das pessoas pelo Estado e permitindo a apreciação dos fatos de modo legitimo, isento e com serenidade.
Se é repudiável que marginais exerçam pressão sobre os juízes no exercício de suas atividades de Estado, igualmente se fazem inaceitáveis as pressões midiáticas quando do julgamento de casos de repercussão política, seja em que sentido for. Ataques pessoais ou à imagem dos magistrados para contestar a legitimidade de suas decisões ou pressioná-los a julgar desse ou daquele modo, a pretexto de uma suposta vontade “popular”, viola os princípios básicos de um Estado Democrático de Direito.
A todos deve ser garantido um julgamento justo e é inarredável dessa condição que o juiz possa agir de conformidade com a sua livre convicção e ter independência na apreciação do caso, seguindo seus princípios na interpretação da lei e sua aplicação aos fatos como lhe parece ser mais justo e correto, de conformidade com sua consciência e os ditames do Direito, sem preocupação de satisfazer esse ou aquele interesse.
Numa democracia a liberdade deve ser plena, com opiniões e manifestações que advenham do livre pensar. Quando, a título do exercício dessa liberdade se busca atingir e vilipendiar a igual liberdade e independência de outrem, em especial na sua atuação institucional, desnatura-se o princípio. A coação ou “retaliação”, com ataques à imagem de um magistrado em razão do exercício de sua livre e fundamentada convicção no julgamento dos processos, constitui um atentado à independência do Poder Judiciário, uma violação às prerrogativas constitucionais dos juízes e um dano enorme às garantias da cidadania.
Em que pese o caráter didático e a importância histórica para o país do julgamento da Ação Penal 470 em tramitação no Supremo Tribunal Federal, popularmente batizada como o caso do mensalão, não se mostra adequado o tratamento que vem sendo conferido aos juízes daquela causa, os ministros da mais alta corte judicial do país, por setores da mídia e das redes sociais.
Os ministros do STF são pessoas indicadas e aprovadas conforme procedimentos constitucionalmente previstos e legítimos para o exercício de uma tarefa dificílima, com grandes sacrifícios pessoais e que exige deles abdicar de boa parte de sua vida social e familiar. Não há, ali, “mocinhos” ou “vilões” e não é razoável tentar criar imagens públicas com estereótipos dessa natureza. Os ministros da causa — como tantos outros juízes país afora — são mulheres e homens que muito estudaram o Direito, se destacaram em sua atuação profissional e que examinam o caso, refletem sobre os fatos e trabalham na construção da decisão que lhes parece mais justa. Para o bem do país e da sociedade, é preciso que façam isso com liberdade, independência e que sejam, deste modo, respeitados no exercício de função institucional e constitucional que exercem.
Pouquíssimas pessoas conhecem os milhares de documentos, depoimentos, petições e argumentos que compõem a Ação Penal 470. São dezenas de réus, uma infinidade de fatos e circunstâncias e centenas de argumentos jurídicos que compõem um caso de altíssima complexidade e de grande repercussão institucional e política. Para cada ministro foram meses para a leitura dos milhares de páginas do processo, do estudo sobre o envolvimento de cada pessoa e da aplicação dos diversos institutos jurídicos a cada ação.
Um juiz, quando necessita de uma análise de alguma circunstância fora dos seus conhecimentos jurídicos para o julgamento do caso, determina a realização de um laudo pericial, seja contábil, médico, de engenharia, psicológico, químico, etc. Não pode o juiz, e não deve, pessoalmente, manifestar-se sobre algo de que não detém conhecimento técnico. No entanto, é de se destacar como alguns jornalistas e seguimentos da sociedade, sem nunca terem sequer lido o processo do chamado mensalão, já tenham feito seu próprio julgamento a respeito do caso e, ainda mais, se achem no direito de julgar os próprios julgadores, “condenando-os ou absolvendo-os”, de conformidade com o seu próprio e imperito entendimento sobre o tema.
Não se pode menosprezar, numa democracia, o grande poder da imprensa e das manifestações de opiniões pelos meios de comunicação e sua ampla reprodução pelas mídias sociais. Quando por tais meios indevidamente imputam-se condutas, julgam-se currículos, plantam-se “murmúrios”, atacam reputação ou violam as imagens dos julgadores, está sendo agredida, em verdade, a própria democracia e os princípios que a institui. Todos os votos dos ministros do STF decorrem de sua independência de julgar de conformidade com sua consciência e, todos eles, devidamente fundamentados em razões jurídicas. Para o bem da democracia e da vida em sociedade, é preciso que sejam respeitados e enaltecidos por assim agirem.
A pressão indevida sobre os juízes quanto ao exercício de sua constitucional atividade profissional, seja pelos criminosos, pelos grupos políticos do poder ou pelos canais de mídia, deve ser amplamente repudiada, pois evidencia o desprezo ao Estado Democrático de Direito. É injusto, enfim, desqualificar uma decisão legítima atacando inconsequentemente a pessoa habilitada institucionalmente a sentenciar, só porque a decisão não é objeto do agrado individual. A história da humanidade já reprovou o macartismo e os momentos de patrulhamento, e não seria bom para a sociedade brasileira vê-los ressurgir na atualidade.
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José Lucio Munhoz é conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), juiz do Trabalho, mestre em Direito e ex-presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho de São Paulo (Amatra-SP).
Artigo publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico, edição de 8 de outubro de 2012.