Artigo da Semana: “O Foro por prerrogativa de função, os Direitos Humanos e os possíveis desdobramentos da AP 470-STF”

Por Fabiano Eustáquio Zica Silva (1) e Hugo Barbosa Torquato Ferreira (2)

Resumo

Este artigo apresenta uma reflexão quanto ao duplo grau de jurisdição e seu status de direitos humanos e o foro por prerrogativa de função, em especial quanto aos julgamentos cuja competência constitucional fora dada diretamente ao Supremo Tribunal Federal. Discorre como o princípio do duplo grau de jurisdição atingiu a condição de prerrogativa de direitos humanos e como tem sido tratado no órgão máximo do judiciário brasileiro. Considerado um estudo dogmático jurídico tem como principais conclusões: O foro por prerrogativa de função já é uma exceção à regra de julgamentos nas instâncias iniciais e, por ser exceção, já possuitratamento constitucional próprio e, portanto, em uma interpretação utilizando-se os conceitos do realismo jurídico clássico, motiva a flexibilização da norma positivada frente ao caso concreto.

Palavras-chave: Foro por prerrogativa de função. Direitos Humanos. Constituição Federal. Pacto de San José da Costa Rica. Realismo Jurídico Clássico. Supremo Tribunal Federal.

1. Introdução

“De réus, José Dirceu, Delúbio Soares, Marcos Valério e outros do processo do mensalão poderão virar vítimas de perseguição política. Se o Supremo Tribunal Federal os condenar, as defesas estudam apresentar reclamação à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), alegando que seus clientes não tiveram asseguradas as garantias básicas no processo e no julgamento” (Agência Estado 12/08/2012)

A questão colocada pelos advogados de alguns dos réus do chamado processo do “mensalão” (3) seria a de que o julgamento do referido processo já se inicia na instância máxima do judiciário brasileiro, assim, aqueles eventualmente condenados não terão como exercer o direito de recorrer. Essa impossibilidade de recurso, segundo esse raciocínio, irá então ferir a garantia de duplo grau de jurisdição, o que, ainda segundo esse raciocínio, contraria o pacto de direitos humanos positivado no ordenamento jurídico pátrio pelo Pacto de San José da Costa Rica (4).

É de se entender, em princípio, como pode dar-se esse conflito uma vez que a instância superior do ordenamento processual brasileiro como competente privativamente e inicialmente em relação a um processo é, pelo mesmo ordenamento, uma exceção ao princípio do foro em geral e ao princípio da isonomia.

Discorrer sobre a posição do Judiciário perante a sociedade, antes de discorrer sobre sua estrutura interna de competências, é importante, haja vista o enfoque dos direitos humanos a ser utilizado no presente texto.

2. Os três poderes  

A divisão do poder Estatal em três esferas distintas (executivo, legislativo e judiciário), como esferas independentes e harmônicas entre si, representam, segundo Sahid Maluf (5), a essência do sistema constitucional. O Estado de direito, surgido na segunda metade do século XVIII, a partir da doutrina liberal e de duas principais revoluções (americana e francesa), consolidou um processo iniciado anteriormente no sentido de buscar a limitação do poder do Estado frente aos indivíduos, com raízes nos primórdios da principalmente na Inglaterra. Os detentores do poder passam a ter seu arbítrio cerceado por princípios como o da legalidade, da liberdade e da igualdade. É o denominado império da lei (6), que, sintetizando o pensamento de Hegel, indica a predominância do direito positivo sobre o direito natural.

Através da obra de Montesquieu (7) a concepção de que o Poder Judiciário, o Poder Executivo e o Poder Legislativo tivessem que ser separados, se incorporou ao constitucionalismo no intuito de assegurar a liberdade dos indivíduos. A ideia então passa a ser a liberdade do povo haja vista que, ainda segundo o mesmo autor, quando no mesmo corpo de magistratura o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não há liberdade. Versa que haveriam leis tirânicas para serem executadas tiranicamente. A concepção inicial dessa ideia era, então, a de garantir a liberdade do indivíduo.

Tal ideia, segundo Dallari (8), evoluiu no sentido de que tal tripartição de poderes seria desenvolvida e adaptada a novas concepções, no intuito de que a separação dos poderes passasse a ser também observada com o objetivo de aumentar a eficiência do próprio Estado pela distribuição de suas atribuições entre os poderes de acordo com sua especialidade.

Essa separação entre os poderes de um mesmo Estado alcançou, já em 1776, com a declaração de direitos de Virgínia (9), o estatuto de direito natural, expressamente descrito no referido documento em seu item nº 5:

“Que os poderes legislativo, executivo e judiciário do Estado devem estar separados e que os membros dos dois primeiros poderes devem estar conscientes dos encargos impostos ao povo, deles participar e abster-se de impor-lhes medidas opressoras; que, em períodos determinados devem voltar à sua condição particular, ao corpo social de onde procedem, e suas vagas se preencham mediante eleições periódicas, certas e regulares, nas quais possam voltar a se eleger todos ou parte dos antigos membros (dos mencionados poderes), segundo disponham as leis.”

A exigência da separação dos poderes aparece ainda com mais ênfase na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada na França em 1789, declarando-se em seu artigo XVI (10): “Toda sociedade na qual a garantia dos direitos não está assegurada, nem a separação dos poderes determinada, não tem Constituição”.

Essa breve introdução tem apenas o intuito de tentar localizar a origem do Poder Judiciário como poder independente dentro da própria concepção do direito, assim, objetivando estabelece seu papel perante a sociedade como instrumento de determinação do que é o direito através da concepção da lei. Esse enfoque é atribuído à noção de que a tripartição dos poderes é uma atribuição histórica dos direitos sociais, posteriormente tratados como direitos humanos.

Segundo o Luiz Flávio Gomes (11), o Poder Judiciário, como parte independente do Estado, possui cinco funções:

  1. aplicar contenciosamente a lei aos casos concretos;
  2. controlar os demais poderes;
  3. realizar seu autogoverno;
  4. concretizar os direitos fundamentais;
  5. garantir o Estado Constitucional Democrático de Direito.

No que diz respeito à função da lei, é importante mencionar sua relação com o Direito, haja vista que a aplicação da lei ao caso concreto é uma das funções do Judiciário.

Segundo Javier Hervada (12), há duas funções da lei na sua referência ao Direito, a primeira delas é a de ser a causa do Direito e a segunda é a medida do Direito. Segundo o mesmo autor, a interpretação da lei deve dar-se de acordo com a realidade social, de forma que passe a ocorrer uma interpretação progressiva das leis, permitindo a aplicação delas de acordo com a evolução da realidade social, permitindo, assim, que as mesmas leis sirvam ao bem da sociedade, sem defasagem entre lei e realidade, explicando-se, assim, a possibilidade de algumas leis durarem séculos sem a necessidade de alteração.

3. O Foro por prerrogativa de função

A estrutura do Poder Judiciário brasileiro é tratada na Carta Magna dos artigos 92 ao 126 e tem como topo o Supremo Tribunal Federal, tratado no art. 101 do referido diploma legal. Sua composição dá-se por onze Ministros, com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada.

Como é praxe dizer, são os guardiões da constituição (13), por inteligência do art. 102 inc. III e suas alienas. Assim, são a instância máxima e, ao menos em teoria, os mais capazes magistrados do país.

Em virtude de tal condição, quis o legislador estabelecer atribuições de julgamentos que se iniciam e, por ser instância máxima, se findam, na própria corte. Tal situação é denominada comumente por foro privilegiado ou foro por prerrogativa de função. É a chamada competência originária ratione persona (14).

Ocorre que a competência por prerrogativa de função é estabelecida, não em razão da pessoa, como sugere o nome do instituto em latim, mas em virtude do cargo ou da função que o sujeito exerce. Assim, tal instituto se pacifica com os demais princípios constitucionais, sobretudo o princípio positivado da igualdade (art. 5º, caput (15)) e o dispositivo constitucional que proíbe os juízos ou tribunais de exceção (art. 5º, XXXVII (16)).

No caso desta modalidade de julgamento o réu não é julgado em razão do que é, mas tendo em vista a função que exerce na sociedade em virtude do cargo que ocupa quando da ocorrência da suposta conduta ilícita.

No julgamento da questão de ordem levantada no Inquérito nº 2.010-SP, o Ministro Marco Aurélio salientou que “a prerrogativa de foro não visa a beneficiar o cidadão, mas a proteger o cargo ocupado”.

4. O devido processo legal

A Carta Magna, em seu art. 5º Inc. LIV (17), positivou a obrigatoriedade do cumprimento do devido processo legal.

Assim, temos que o cumprimento de qualquer julgamento deve dar-se em conformidade com o que é determinado na legislação processual. Tal direito, como visto, é tratado no rol das garantias constitucionais positivadas.

Segundo André Reis (18) tal princípio significa que ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem um processo justo; assegurando-se aos litigantes, e aos acusados em geral o contraditório, a ampla defesa e um julgamento imparcial – fundamentado na legislação. No mesmo texto consultado, o referido autor informa ainda que são os corolários para o devido processo legal: o contraditório (19), a ampla defesa (20), publicidade (21), do juiz natural (22), da assistência jurídica integral e gratuita (23) e o duplo grau de jurisdição.

Ainda discorrendo sobre o conceito de devido processo legal, Nelson Nery Júnior (24) versa que:

“o princípio do devido processo legal constitui o gênero do qual são espécies os princípios processuais da isonomia, do juiz e do promotor natural, da inafastabilidade do controle jurisdicional, do contraditório, da proibição da prova ilícita, da publicidade dos atos processuais, do duplo grau de jurisdição e da motivação das decisões judiciais.”

Ocorre que o duplo grau de jurisdição não se encontra positivado na Constituição da República, embora a doutrina majoritária entenda-o como preceito constitucional oriundo do princípio do devido processo legal. Para efeito, citemos alguns exemplos doutrinários:

Evilazio Marques Ribeiro (25): “Apesar de não estar expressamente previsto, a Constituição alberga o duplo grau de jurisdição como garantia constitucional decorrente do devido processo legal”.

Magno Federici Gomes (26):

“O princípio do duplo grau de jurisdição, implicitamente consignado na CR/88, em seu art. 5º, inciso LV, e na competência recursal prevista nos arts. 102 e seguintes, implica justamente na possibilidade de revisão das decisões por magistrados mais experientes, formadores de um segundo órgão que também tenha o poder de julgamento e jurisdição, querendo, com isso, propiciar um aprimoramento das decisões judiciais, mediante sua reavaliação”.

O Desembargador do TJRS, Adão Sérgio do Nascimento Cassiano (27) “acesso ao duplo grau de jurisdição é direito fundamental do cidadão, decorrente da necessária observância dos princípios do devido processo legal e da ampla defesa, insculpidos no art. 5º, LIV e LV, da CF.”

4.1Da positivação do duplo grau de jurisdição como princípio de direitos humanos

Embora não esteja grafado positivamente no direito brasileiro em nível Constitucional, o duplo grau de jurisdição encontra-se positivado no direito brasileiro em outro diploma legal, o já citado Pacto de São José da Costa Rica.

O referido pacto internacional que é denominado, como dito, por Convenção Americana de Direitos Humanos, traz dois dispositivos que expressamente versam sobre a garantia do duplo grau de jurisdição como prerrogativa de direitos humanos.  Tais dispositivos são os seguintes (28):

“Artigo 8º – Garantias judiciais(…):

2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:(…)

h) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior.

Artigo 25 – Proteção judicial

1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.”

A ratificação do citado instrumento internacional trouxe, portanto, as normas do referido texto ao ordenamento jurídico interno de forma positivada e, pelo disposto no preâmbulo do referido pacto (29), tratando tal princípio processual como norma de direitos humanos.

5. O Pacto de São José da Costa Rica e o Supremo

Em virtude da dinâmica do presente estudo, temos as seguintes indagações em referência às ações penais iniciadas no STF: O que fazer se um réu condenado pelo Supremo Tribunal Federal entender que merece exercer o referido direito de duplo grau de jurisdição?

Existe possibilidade de uma reanálise do julgamento?

Por não existir instância superior ao Supremo Tribunal Federal, como fica a questão do recurso à sentença proferida por esse órgão? A impossibilidade de recurso iria, então, ferir ao tratado internacional sobre direitos humanos?

Essas perguntas já foram, se não diretamente, ao menos por questões incidentais, enfrentadas pelo Supremo Tribunal Federal.

Já no ano de 2000, o julgamento do recurso em Habeas Corpus n. 79785-7/RJ (30), o Supremo Tribunal Federal enfrentou a questão da extensão da validade dos citados dispositivos do Pacto de São José da Costa Rica. Apesar da preocupação que os integrantes da corte demonstraram quanto à incorporação de normas incrementadoras de garantias individuais para além da previsão constitucional, a conclusão estava contra entendimento de doutrinadores como Sylvia Steiner (31) e Flávia Piovesan (32) que versam que, independente da formatação jurídica legislativa, normas jurídicas que tratam de direitos humanos devem sempre ser tratadas como normas materialmente constitucionais (33). No julgamento a questão mais relevante, a despeito da falta de previsão específica de recursos contra julgamentos criminais originários pelos tribunais, foi considerado o princípio da supremacia constitucional, mesmo quando seus termos sejam menos protetores que os tratados internacionais de direitos humanos.

Entretanto, o julgamento do referido recurso não foi unânime e naquela ocasião, o ministro Marco Aurélio, que foi vencido, entendeu que mesmo à míngua de previsão constitucional expressa de recursos contra decisões proferidas em ações originárias em única instância, o Pacto determina o acolhimento irrestrito do duplo grau de jurisdição, sem ressalvas e, em seu voto, versou (34):

“Julgada a ação penal ante a competência originária do Tribunal de Justiça e imposta condenação, abre-se a porta para a observância irrestrita à Convenção Americana Sobre Direitos humanos, abre-se a via recursal para o acusado, até então simples acusado, vir a lograr um novo crivo quanto à imputação feita”.

A objeção do ministro Sepúlveda Pertence pesou contra, especialmente em relação às situações em que o STF seria a instância julgadora originária. A sugestão do ministro Marco Aurélio, na ocasião, seria um novo julgamento pelo próprio Supremo; todavia, o duplo grau assegurado pelo Pacto pressupõe instância superior.

A Emenda Constitucional 45/2004 não resolveu a questão, uma vez que o referido pacto já estava positivado no ordenamento jurídico brasileiro em outra condição jurídica. A citada emenda acresceu o parágrafo 3º ao artigo 5º da Constituição Federal de 1988 – segundo o qual o status constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos está condicionado à sua aprovação por dois turnos, por três quintos dos integrantes das casas legislativas, mesmo quorum das emendas constitucionais.  Dessa feita, o positivismo da norma internacional, que na ocasião já havia ocorrido como matéria infra constitucional, não favoreceu pouco a tese de que, tendo sido incorporado anteriormente à emenda, o status constitucional do tratado internacional em tela estaria assegurado.

A evolução mais notável no sentido de adotar-se as regras trazidas no texto do Pacto se deu com a supressão da prisão civil de depositário infiel, com base no artigo 7 (35) do referido tratado internacional, conforme ficou consignado no RE 466.343 (36). O que nos interessa no presente trabalho é o disposto no voto vencido do ministro Cezar Peluso (37), no referido julgamento, no qual versou que o caráter histórico dos direitos fundamentais é base suficiente para a adoção da restrição consignada no tratado, ou seja,

“é preciso que a Corte, no curso da história, diante de fatos concretos, vá descobrindo e revelando os direitos humanos que estejam previstos nos tratados internacionais, enquanto objeto da nossa interpretação, e lhes dispense a necessária tutela jurídico-constitucional”

O duplo grau de jurisdição fica num panorama ainda mais distante de plena aplicação no Brasil. Encontra a barreira do teto jurisdicional brasileiro haja vista que, muito embora haja, como citado, vários processos que se iniciam (ou possam se iniciar, no caso do Habeas Corpus) no Supremo, inexista órgão jurisdicional acima da citada corte.

6. A relativização dos Direitos Humanos no STF

Hodiernamente, a tendência é de se considerar que não há relevância se o Pacto de São José está ou não em acordo com a Constituição. O ministro Joaquim Barbosa afirmou, no julgamento do Agravo de Instrumento 601.832 – Agr/SP, que o acesso ao duplo grau de jurisdição não é de caráter absoluto, uma vez que a própria Constituição faz ressalvas prevendo julgamentos originários por tribunais superiores (ou tribunais locais) em caso de foro por prerrogativa de função, sem contemplar competências para recursos ordinários ou apelações desses julgamentos (38).

O aparato normativo brasileiro e o próprio STF parecem longe de agregarem, sem ressalvas, a garantia do duplo grau de jurisdição (no sentido clássico de reavaliação integral, por outra corte, de superior grau, da matéria de mérito do julgamento).

Tal posição também encontra base doutrinária, conforme vemos no texto do Promotor Ricardo de Barros Leonel (39), citando Dinamarco:

“Entretanto, é consistente o argumento de que na nossa ordem constitucional não há uma garantia do duplo grau, mas apenas um princípio, que pode ser, em certa medida, mitigado (40). Trata-se de opção de política legislativa dotada de razoabilidade, em benefício de valores constitucionalmente garantidos, como a efetividade e a tempestividade da tutela jurisdicional, decorrentes do art. 5º, XXXV e LXXVIII, da CF (este último em decorrência do acréscimo promovido pela EC nº 45/04). Admitindo, assim, que o duplo grau é um princípio a ser potencialmente atendido, mas não uma garantia, compreende-se facilmente a inexistência do reexame necessário como regra geral, bem como que o próprio legislador pode suprimi-lo em certas situações.”

7. O Caso Barreto Leiva V. Venezuela e a previsível intervenção da Corte Interamericana de Direitos Humanos na AP 470

Oscar Enrique Barreto Leiva foi condenado, pela Suprema Corte da Venezuela, em ação originária, à pena de 02 (dois) anos e 02 (dois) meses de prisão pela prática de crimes contra a propriedade pública, em decorrência de atos praticados durante o período em que foi Diretor Geral do Departamento de Administração e Serviços da Presidência da República. A competência para julgamento foi atraída para a Suprema Corte em razão da figuração de parlamentares e do próprio Presidente da República no polo passivo da ação penal. Por se tratar da máxima instância da Venezuela, Barreto Leiva não teve direito a recurso.

O condenado provocou a OEA, alegando diversas violações a direitos humanos.

Inicialmente, sobre o foro por prerrogativa de função, a Corte anotou que se trata de instituto criado para proteger o próprio Estado e para preservar o regular andamento do serviço público, não se tratando de um direito pessoal do servidor, mas de uma norma que atende ao interesse coletivo.

Sobre o foro por conexão, enfatizou-se que o princípio do devido processo legal exige que o julgamento seja feito por um juízo com competência previamente fixada. No caso em análise, a atração da competência se deu por determinação legal anterior aos fatos narrados pela acusação, pelo que foi reconhecida a regularidade do procedimento venezuelano.

Por outro lado, pronunciando-se sobre o direito ao recurso, a Corte registrou que tal prerrogativa existe para proteger o direito de defesa, impedindo que um julgamento falho se torne definitivo. Enfatizou que tal direito atribui maior credibilidade aos atos judiciais e, ao mesmo tempo, oferece maior segurança e proteção à pessoa acusada. Consignou, ainda, que, embora os Estados membros tenham um certo grau de discricionariedade para regular o exercício deste direito, não podem criar restrições ou requisitos que que fulminem sua essência. O Estado pode criar foros diferenciados por prerrogativa de função, mas deve garantir ao condenado o direito de apelar.

Neste ponto, ventilou-se que o julgamento deveria ser feito por órgão fracionado da Suprema Corte, garantindo-se recurso ao pleno.

Nessa esteira, a Corte reconheceu que houve violação ao art. 8o (2) (h) (41)  do Pacto de San José da Costa Rica, determinando que a Venezuela oferecesse a Barreto Leiva a possibilidade de recorrer da condenação.

Este precedente, aliado ao entendimento da própria Suprema Corte brasileira firmado a partir do HC 84.078/MG (inconstitucionalidade da “execução antecipada de pena”), torna previsível uma possível suspensão da execução das penas privativas de liberdade eventualmente aplicadas na AP 470, ao menos até pronunciamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre a matéria.

8. Conclusão

O entendimento do Supremo Tribunal Federal em relação à adoção das exceções na aplicabilidade dos direitos humanos é, ao nosso ver, uma determinação do que seria uma aplicação moderna do realismo jurídico, assim ensinado  por Bobbio (42):

“El cambio de perspectiva em El estúdio Del derecho se manifiesta principalmente em La consideración del derecho basado em La costumbre como fuente primaria del derecho, precisamente porque este derecho surge de manera inmediata de La sociedad y es La expresión genunina del sentimiento jurídico popular contra el derecho impuesto por La voluntad del grupo dominante (la ley) y el derecho elaborado por los técnicos del derecho (el llamado derecho científico). En esta revalyación de la costumbre como fuente de derecho podemos ver um aspecto de esa consideración social del derecho, que se contrapone tanto al iusnaturalismo abstracto como al rígido positivismo estatal generalmente predominante entre los juristas”.

E ainda na busca da determinação doutrinada por Hervada, que ensina que “dizer o justo é nomear o direito(43)”.

Claro que a busca de uma interpretação jurídica que atenda aos anseios sociais frente à interpretação positivista encontra barreiras que podem levar o Brasil à corte americana de direitos humanos, haja vista que a referida corte possui autoridade para determinar a aplicação do suposto direito violado, nos termos de seu art. 63 (44). Não se trata da não aplicação da lei, trata-se de uma interpretação social da norma; entretanto, a situação final ainda irá pairar sobre dúvidas, se é que algum dia pode se dizer de certeza no que tange ao Direito.

___________

Notas

1) Advogado e professor universitário. Mestrando em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito Milton Campos (Nova Lima/MG). Professor em Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito.
(2) Juiz de Direito no Estado do Acre. Atualmente é titular da Comarca de Assis Brasil e responde, concomitantemente, pela Vara Criminal da Comarca de Brasiléia. Foi advogado e agente da Polícia Federal. Autor dos livros “Questões cíveis enfrentadas pelo STF e pelo STJ em 2007” (ISBN: 978-85-7716-414-1) e “Questões Criminais enfrentadas pelo STF e pelo STJ em 2007” (ISBN: 978-85-7716-415-8).
(3) STF – AÇÃO PENAL: AP 470 MG – disponível em www.stf.jus.br, consultado em 13/08/2012.
(4) Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), promulgado pelo decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992.
(5) MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. Saraiva: São Paulo, 2003. 26 ed.
(6) HEGEL, G.F.W. Princípio de filosofia do direito. Lisboa: Guimarães, 1990.
(7) Op. Cit. 2003.
(8) DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
(9) Citado em JAYME, Fernando G. Direitos humanos e sua efetivação pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.
(10) Op. Cit. 2005.
(11) GOMES, Luiz Flávio. Estado Constitucional de Direito e Nova Pirâmide Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2008.
(12) HERVADA, Javier. O que é o direito? A moderna resposta do realismo jurídico clássico: uma introdução ao direito; tradução Sandra Marta Dolinsky. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2006.
(13) Em voto proferido pelo Ministro Marco Aurélio Melo na ADI 3999-7, disponível em www.stf.jus.br, consultado em 16/07/2012.
(14) Em razão da pessoa, em tradução livre.
(15) Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (…).
(16) XXXVII – não haverá juízo ou tribunal de exceção.
(17) LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.
(19) Artigo 5º, inciso LV, da Constituição da República Federativa do Brasil, “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
(20) Idem ao item anterior.
(21) Art. 5º, inc. LX da CR/88 – a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem. E Art. 93 inc IX também da CR/88 – X – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.
(22) Idem citação n. 15.
(23) Art. 5º, inc. LXXIV – o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.
(24) JÚNIOR, Nelson Nery. Princípios fundamentais: teoria geral dos recursos. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996.
(25) Em “O estudo principiológico do duplo grau de jurisdição em nível constitucional à luz do Supremo Tribunal Federal”, extraído de http://www.artigonal.com/biologia-artigos/o-estudo-principiologico-do-duplo-grau-de-jurisdicao-em-nivel-constitucional-a-luz-do-entendimento-do-supremo-tribunal-federal-3616921.html, consultado em 16/07/2012.
(26) Em “Regime de retenção dos recursos especial e extraordinário – Inaplicabilidade – Advento da Lei nº 11.187/05 – Novo Código de Processo Civil”. Publicado na Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil nº 42 – Maio/Jun de 2011.
(27) Em decisão proferida no Agravo de Instrumento n. 70010901965, do TJRS, disponível em www.tjrs.jus.br, consultado em 25/08/2012.
(29) “Reafirmando seu propósito de consolidar neste Continente, dentro do quadro das instituições democráticas, um regime de liberdade pessoal e de justiça social, fundado no respeito dos direitos humanos essenciais”, extraído da mesma fonte que a citação 27.
(30) Consultado em www.stf.jus.br em 16/07/2012.
(31) Silvia Steyner. A convenção Americana sobre Direitos Humanos e sua Integração ao Processo Penal Brasileiro. São Paulo: RT, 2000.
(32) PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e a jurisdição constitucional internacional. In: Revista latino-americana de estudos constitucionais. Paulo Bonavides (org). Del Rey, 2003.
(33) Na época os tratados internacionais entravam no ordenamento jurídico pátrio como leis ordinárias.
(34) Min. Marco Aurélio, voto vencido no RHC 79785-7 / RJ.
(35) Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar. Extraído da mesma fonte da citação 27.
(36) Disponível em www.stf.jus.br, consultado em 16/07/1981.
(37) RE 466.343 / SP, disponível em www.stf.jus.br, consultado em 16/07/1981.
(38) “Se bem é verdade que hoje existe uma garantia ao duplo grau de jurisdição, por força do Pacto de São José, também é que tal garantia não é absoluta e encontra exceções na própria carta” (grifos como no original) disponível em www.stj.jus.br acessado em 16/07/1981.
(39) LEONEL, Ricardo de Barros. Cognição Judicial em Grau de Apelação, à Luz das Reformas do CPC. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil nº 21 – Nov/Dez de 2007.
(40) DINAMARCO, Cândido Rangel. A nova era do processo civil. São Paulo: Malheiros, 2003 apud cf. LEONEL, Ricardo de Barros, 2007.
(41) Artigo 8º – Garantias judiciais. 2. “Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: h) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior.”.
(42) BOBBIO, Norberto. Teoría General del Derecho. traduzido do italiano para o espanhol por Jorge Guerrero R. Santa Fé de Bogotá, Colômbia: Temis S.A, 1999.
(43) HERVADA Op. Cit. pg. 12.
(44) Artigo 63 – 1. Quando decidir que houve violação de um direito ou liberdade protegidos nesta Convenção, a Corte determinará que se assegure ao prejudicado o gozo do seu direito ou liberdade violados. Determinará também, se isso for procedente, que sejam reparadas as consequências da medida ou situação que haja configurado a violação desses direitos, bem como o pagamento de indenização justa à parte lesada.

Bibliografia

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Assessoria | Comunicação TJAC

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