O programa oferece um lar temporário para crianças em vulnerabilidade.
Situações de risco, violência, abandono e negligência tornam crianças em vítimas dos próprios pais ou dos problemas sociais vividos pela família. Essa realidade é enfrentada diariamente pela Rede de Proteção da Criança e do Adolescente, que trabalha para resguardar essas vidas.
O programa Família Acolhedora, que conta com o apoio do Tribunal de Justiça do Acre (TJAC), é desenvolvido pela Prefeitura de Rio Branco, e atua diretamente nesse quadro de vulnerabilidade, com o objetivo de garantir os direitos dos infantes.
É o caso de uma criança abandonada pela mãe e padrasto, que vamos chamar de Gabriel. Mesmo tendo parentes, o abandono se materializava na omissão de cuidado e outras violações. Desta forma, os conflitos encontrados não tinham solução imediata e devido à falta de condições, a criança foi afastada do lar.
Direito de Convivência Familiar
“O menino não sabia o que era uma galinha”, disse Raimunda Silva ao contar sua experiência com o acolhimento de uma criança. Ela mora na Vila Acre e tem uma casa com um grande quintal – quase uma chácara. Logo as galinhas e os pintinhos, além de uma companhia habitual são também uma tarefa diária de cuidado, que em pouco tempo foi assumida pelo menino.
Gabriel morou 10 meses com a família. Ele saiu do Educandário Santa Margarida para uma Família Acolhedora. Foi quando Raimunda virou tia. A Família Acolhedora funciona como um lar temporário para a criança ou adolescente afastado do seu lar de origem, devido a uma medida protetiva, deferida pela Justiça.
Da sala da casa é possível avistar a cama infantil e o mosqueteiro, preparados com carinho para acolher o garoto. Uma das boas memórias desse período, que durou de agosto de 2017 a junho de 2018, é também sobre a chegada de Gabriel. “Logo que ele entrou aqui, perguntou se podia tomar banho na caixa d’água. Mas aí ele foi e passou à tarde todinha lá”, conta rindo.
A caixa d’agua funcionava como piscina e reflete a simplicidade da rotina da casa, composta por detalhes de muita alegria, algo definido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) como “Direito à Convivência Familiar”. Convivência que foi construída na sombra das mangueiras do quintal, onde Gabriel pendurava a rede e brincava com os dois cachorros: Pipoca e Pitoco. Logo, a rotina foi desenvolvida e ele foi matriculado na escola onde dona Raimunda trabalha como merendeira, localizada no mesmo bairro.
A adaptação foi fácil e natural.
Vivência com afeto
Raimunda é católica e foi durante o Encontro de Casais com Cristo que conheceu o programa Família Acolhedora. No mesmo dia ela se cadastrou no serviço voluntário, juntamente com seu marido Paulo Ribeiro. A partir daí passou a ser capacitada pela equipe do Serviço de Acolhimento Familiar (SAF), ligada à Secretaria Municipal de Assistência e Direitos Humanos.
O casal criou quatro filhos e todos estão adultos, com a vida feita. Portanto, ao se inscreverem, definiram o perfil para o acolhimento: “eu falei que tinha que ter uns sete anos de idade, que já me acompanhasse em tudo, porque eu não tenho mais ninguém dentro de casa. Então, queria alguém que conseguisse andar mais eu”, afirma.
Assim veio Gabriel. “Acho que a realidade de uma casa é diferente. No educandário é tudo na mão, nem pode entrar na cozinha. Aqui, ele queria um ovo, ia lá, buscava e eu fazia na hora pra ele”, narra. Em suas próprias palavras, Raimunda tem certeza que fez “diferença na vida do Gabriel” e cuidou dele da melhor forma que podia.
Sua devoção ajudou a encontrar uma nova missão, que abriu as portas da sua casa para uma responsabilidade, cumprida com afeto. “Todo o bem que a gente faz é pra nós mesmos. Fiz o meu melhor pro Gabriel e estou pronta para colaborar mais outras vezes”, ressalta.
Lição de amor e cidadania
Durante o acolhimento, o acompanhamento foi contínuo: “tinha reunião no CREAS, visitavam ele na escola, tinha consulta com a psicóloga”. “Toda reunião sempre diziam que ele não era meu, por isso eu estava sempre consciente que um dia ele ia embora”, acrescentou.
A educadora social do Serviço de Acolhimento Familiar (SAF), Nívea Melo, explicou que o acolhimento pode durar até 18 meses, “mas o programa preza para que a duração seja a menor possível”, tendo em vista que o foco é restabelecimento em uma situação definitiva.
A servidora municipal destacou ainda a importância para o público infantil em ter uma pessoa de referência, o que nesse exemplo se consubstanciou nos ensinamentos que contribuíram para o amadurecimento do Gabriel e apoio para enfrentar uma fase difícil da sua vida.
Contudo, enquanto Gabriel estava sob medida protetiva, o processo judicial tramitava na Vara da Infância e Juventude de Rio Branco. O desfecho foi a adoção.
Depois de adotado, ele pediu para rever dona Raimunda. A mãe que adotou Gabriel a procurou para marcar o encontro. “Na hora meu santo bateu com o dela”, elogia. No último mês, o encontro aconteceu em uma sorveteria. “Ele está com pessoas muito boas e eu fico feliz que ele tá bem. Minha recompensa é saber que ele foi encaminhado para um futuro melhor”, conclui emocionada.
Alternativa à institucionalização
Durante o seminário Pacto Nacional pela Primeira Infância no Acre, realizado este mês na Escola do Poder Judiciário, o juiz auxiliar da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado do Paraná Sérgio Kreuz apresentou estudos científicos que corroboram o entendimento de que é preferível que a criança seja incluída em um acolhimento familiar do que em acolhimento institucional.
Uma referência apresentada foi a pesquisa desenvolvida por Charles Zeanah, da Tulane University, na qual foi avaliado que a criação institucional aumenta os riscos de anormalidades de desenvolvimento. Desta forma, programas similares ao Família Acolhedora são desenvolvidos em outros estados brasileiros e em outros países. Sendo esse o caminho para minimizar os impactos dos danos afetivos, retardo na socialização e déficits no desenvolvimento motor e na linguagem.
“A criança encontra estabilidade, tem atenção individual e personalizada, mantém-se na comunidade, ou seja, vai à igreja, vai ao mercado… além disso, a família tem o papel de elevar a autoestima da criança, do que adianta eu tirar uma nota 10 na escola, se eu não tem pra quem contar?”, descreveu o palestrante convidado.
No Brasil existem 2.834 unidades de acolhimento institucional. Em 2018, foram acolhidos 33.146 crianças e adolescentes. A desproporção entre o público e o serviço comprova o tamanho do desafio de garantir a proteção infanto-juvenil. Ainda segundo dados da Secretaria Nacional de Assistência Social, há apenas 1.625 famílias acolhedoras em todo o país. A adesão ao programa ainda é baixa.
No estado do Paraná, de onde provém o juiz, há 512 famílias acolhedoras e 382 instituições de acolhimento. Ou seja, há mais famílias do que instituições. Esse montante de voluntários foi alcançado, principalmente, pela difusão do programa e por haver uma lei municipal que rege o serviço. Em agosto deste ano, havia 3.170 crianças e adolescentes em situação de acolhimento, destes 2.676 estavam em instituições.
No Acre, há apenas quatro famílias cadastradas. É preciso mais famílias disponíveis.
Seja uma Família Acolhedora!
A coordenadora da Infância e Juventude, desembargadora Regina Ferrari, conheceu Raimunda e Paulo recentemente, oportunidade que entregou um Certificado de Reconhecimento pela sua atuação como Família Acolhedora.
“O que eles fizeram pelo Gabriel não tem preço. Por mais que um abrigo cuide bem, ele não consegue substituir a falta que uma família faz. A Família Acolhedora recebe a guarda provisória e vai dar oportunidade para essa criança ter um colo, o carinho de irmãos e até avós, como eles fizeram. Assim como determina a lei, nós acreditamos nesse programa e queremos incentivar que mais famílias se disponham a colaborar”, convidou.
Apesar do projeto ainda ser embrionário, a mobilização segue de forma proativa por meio de apresentações em comunidades, divulgação nos meios de comunicação e no próximo dia 4, será realizado o III Encontro do Serviço de Acolhimento Familiar, no Centro Cultural Thaumaturgo Filho, onde o programa também será exposto aos participantes.
O gestor do Serviço de Acolhimento Familiar, Crispim Saraiva, informa que o trabalho está sendo realizado em um tripé: “captando voluntários, capacitando e acompanhando as famílias acolhedoras, responsáveis por cuidar das crianças que estão passando por algum conflito, até que a situação seja resolvida”, resume.
Para aderir ao programa, as pessoas interessadas podem comparecer na Secretaria de Assistência Social, na Vara da Infância e Juventude, localizada na Cidade da Justiça, também nos conselhos tutelares.
Para participar é necessário ter mais de 18 anos de idade, residir em Rio Branco, não possuir antecedentes criminais, nem estar inscrito no Cadastro Nacional de Adoção, além de ter disponibilidade de tempo para cuidar de uma criança. Mais informações: (68) 3225-4404.